Martin Scorsese, o expoente do cinema criminal

por Lucas Brandão,    17 Novembro, 2016
Martin Scorsese, o expoente do cinema criminal
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Martin Scorsese ainda não parou desde que iniciou a sua carreira nas lides da realização. O seu cunho não deixou o cinema indiferente desde os anos 70, década na qual se apresentou pela primeira vez de forma autónoma e mediática. A partir dos subúrbios da tão sua cidade de Nova Iorque, o cineasta percorreu os caminhos mais inauditos e inóspitos da vida urbana, em especial os contextos mais delicados e emaranhados. Para tal, contou com uma base vanguardista quanto ao relato das peripécias de cada um dos seus projetos, desde o aspeto visual até ao conceptual. Crucial também no papel de lançador de grandes talentos da representação, Scorsese fez tudo e continua com a agenda repleta de objetivos por cumprir. Um condecorado e consagrado nome na cultura de uma América cada vez mais global.

Martin Charles Scorsese nasceu a 17 de novembro de 1943 em Queens, subúrbio de Nova Iorque. As influências italianas que recebeu foram precoces e motivadas pela mudança do agregado familiar para Little Italy, também nos arredores novaiorquinos, muito por fruto da sua ascendência italiana. Com os seus pais a serem ambos atores, foi natural a vocação artística do pequeno Martin, fundamentada também pela asma deste e que o impossibilitou de praticar desporto. Frequentar o palco e as peças protagonizadas pelos seus pais, em conjunto com as epopeias que leu e com o cinema da Nouvelle Vague e do neorrealismo italiano que acompanhou, deu as bases providenciais para os primeiros passos profissionais de Scorsese. Assim, desistiu da carreira sacerdotal que havia previsto para o seu futuro e deixou o Bronx para se formar na New York University, tanto no College of Arts and Science como na Tisch School of Arts.

Num período de grande dinâmica social, e ainda durante a sua formação académica, desenvolveu algumas curtas-metragens, das quais se destacam What’s a Nice Girl Like You Doing in a Place Like This (1963), It’s Not Just You, Murray! (1964) e The Big Shave (1967). Esta última notabilizou-se das restantes pelo caráter metafórico induzido pela guerra do Vietname, onde o protagonista rapa o seu cabelo e desfaz a sua pele numa toada de mutilação. De seguida, veio a sua primeira longa-metragem de nome Who’s That Knocking My Door (1967), contando com um estudante de representação que seria seu parceiro nos seus projetos seguintes. Chamava-se Harvey Keitel e protagonizou o portal de entrada do cineasta no competitivo mundo do cinema profissional. Mean Streets (1972) assumiu esta função e serviu também para incutir alguns traços autobiográficos do próprio realizador, assim como o seu trabalho anterior. Neste filme, e para além desta nota mais íntima, o seu estilo cinematográfico começou a ser balizado. Um microcosmos dentro do qual a figura masculina saiu vincada, assim como as amizades e inimizades geradas num seio criminal. A religião católica surgia como a via de inspiração e de refúgio do protagonista, apesar de não evitar variadas e eventuais disputas sangrentas. O tratamento cinematográfico escuro e sinuoso ajudou a assentar este registo um tanto ou quanto documental, para além da música vibrante e fulgurante dos tempos nos quais se situava a ação do filme. Tudo isto foi possibilitado pela tutela do produtor Roger Corman, que ajudou Scorsese a desenvolver muito com pouco.

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Fora Alice Doesn’t Live Here Anymore (1974, valendo um Óscar à protagonista), que virou o paradigma do cinema de Scorsese para o enfoque na figura feminina, o trilho seguido pelo novaiorquino não variou muito do seu primeiro êxito. Isto corroborou-se no êxito retumbante gerado por Taxi Driver (1976), protagonizado por um dos atores que ganhou asas em Mean Streets. Este foi Robert De Niro, parceiro de uma sinergia rentável e sustentável para ambos os lados. O filme acompanha a vida solitária e gradualmente enlouquecida de um taxista veterano de guerra. Travis Bickle assume assim as rédeas de um projeto que é fortemente marcado por um exigente trabalho de filmagem, com complexas posições de câmara, e por imensos contrastes de cores mais ou menos fortes. O filme lançou a atriz Jodie Foster para a ribalta com somente 14 anos, para além de consolidar Harvey Keitel como um dos seus atores de eleição. O Palme d’Or do Festival de Cannes saltou para as mãos de Scorsese, assim como várias nomeações aos Óscares.

Após vincar de forma veemente o seu estilo, o realizador decidiu arriscar e abordar a sua cidade de uma forma mais romantizada e musical. Saiu dessa idealização New York, New York (1977) que reuniu Roberto De Niro e Liza Minnelli. Recebido de forma mista, Scorsese não reagiu da melhor forma e tornou-se dependente de cocaína. Porém, conseguiu ainda superar-se e empreender em outros projetos musicais e cinematográficos (incluindo a filmagem de um concerto de uma constelação de músicos em The Last Waltz (1978) até se reencontrar com o parceiro da sua vida profissional e que praticamente lhe salvaria à vida. Foi esse o seu Travis Bickle, foi esse o seu futuro Jake LaMotta. Foi Robert De Niro novamente a figurar no papel principal de um projeto de Scorsese e a compor Raging Bull (1980). Convencido de que seria o seu último filme, o realizador dedicou-se com tudo o que tinha para a sua edificação. Tanto o ator como o cineasta estudaram afincadamente este campeão de boxe e a sua controversa vida. O resultado foi um KO técnico às inseguranças e às intempéries que vinham afetando Scorsese, garantindo o regresso à ribalta e o Óscar de Melhor Ator para o seu amigo De Niro. Filmado a preto e branco, este trabalho tornou-se mais expressionista e menos introspetivo que o habitual, arriscando em distorções de perspetiva e em cenas de câmara lenta. Contudo, e na essência do filme, as questões abordadas não se afastaram do desejo de redenção e de superação da culpa e da insegurança detidas, muitas vezes libertas a partir de uma violência irracional.

A dupla voltou à ação com The King of Comedy (1983), satirizando as celebridades e a atenção mediática que as circunda, em especial aos comediantes. O filme acaba por se tornar surrealista no sentido em que rebusca o caricato de uma situação que acaba por formar uma metacomédia, isto é, uma comédia da comédia. Assiste-se novamente a uma distinta abordagem visual, com Scorsese a procurar takes mais longos e posições mais estáticas. Outro trabalho que pontificou na carreira do realizador foi The Last Temptation of Christ (1988). A polémica gerada por este filme deveu-se significativamente ao modo como a vida de Jesus Cristo é abordada, sendo esta humanizada ao invés de divinizada. Baseado na obra do autor grego Nikos Kazantzakis, esta adaptação independente toca em pontos delicados da espiritualidade, pontos esses ainda muito sensíveis para as várias comunidades ortodoxas.

Os anos 90 chegavam e, consigo, um novo projeto de Scorsese. Goodfellas (1990) liga-se novamente às lides do crime e novamente a contar com o seu amigo Robert De Niro. Este, unido a Ray Liotta e a Joe Pesci, um velho conhecido da dupla, retrata um grupo imbuído na complexa teia de relações entre gangs e a máfia norte-americana. A palete de cores de Scorsese é escolhida meticulosamente e isso reflete-se no virtuosismo visual do filme, que consolida a cinemática abrangente e ousada como traço identitário da sua feitura artística. Um remake de Cape Fear (1991) foi o que se seguiu no pecúlio do cineasta, assim como o fracassado The Age of Innocence (1993), este que tentava beber de Visconti, Rossellini e Welles para retratar os padrões da aristocracia novaiorquina do século XIX. Robert De Niro colaboraria pela última ocasião até à presente data (embora esteja calendarizada o regresso da parceria em The Irishman) no filme Casino (1995), este que contou também com Joe Pesci e com mais peripécias relativas à vida do crime. Kundun (1997, tentando retratar a vida do atual Dalai Lama) e Bringing Out the Dead (1999) antecederam a criação da segunda grande aliança na carreira de Martin Scorsese.

O século XXI havia chegado e uma lufada de ar fresco avizinhava-se, apesar da expedita colaboração com Paul Schrader, com quem se aventurou a estudar a redenção pela religião. 2002 aliou o jovem ator Leonardo DiCaprio a Martin Scorsese e formou uma parelha de futuros êxitos. Gangs of New York convidou também o génio de Daniel Day-Lewis e relatou os conflitos existentes entre os descendentes de irlandeses em clima de guerra civil. O retrato conceptual baseou-se sobretudo em cineastas italianos e na sua exposição de uma realidade politica e socialmente definida. O duo voltou a colaborar na biografia do aviador e realizador Howard Hughes denominada The Aviator (2004), onde é novamente perceptível a extravagante mas deslumbrante abordagem visual de Scorsese. Neste, destaca-se o papel do silêncio como determinante no desenvolvimento da personagem como alguém mais isolado e incompreendido.

Dois anos depois, chegava ao grande ecrã The Departed, filme que conjugou Leonardo DiCaprio a Matt Damon e a Jack Nicholson. Contando com um elenco de luxo, o projeto focou-se na vida criminal de Boston e num argumento com uma dinâmica que tanto tem de elástica como de imprevisível. Nesta espécie de orientação circunstancial, só Shutter Island (2010) conheceu um percurso similar, envolvendo novamente DiCaprio e uma instituição psiquiátrica na qual o paradeiro de um paciente se desconhece. Scorsese consegue aqui expandir a sua atmosfera visual obscura e abúlica para uma dimensão mais ampla e conceptualmente mais exigente, abandonando os limites da sua zona de conforto geográfica e artística. Já em Hugo (2011), o novaiorquino redescobre-se no 3D e na transmissão das emoções das personagens a partir deste. Esta aventura sucede-se nos anos 30 parisienses e é liderada por uma criança com sentido de sobrevivência após ficar órfã de forma repentina.

No intervalo de diversas iniciativas relativas ao pequeno ecrã, nomeadamente em séries televisivas, o realizador trouxe um filme baseado em Jordan Belfort designado por The Wolf of Wall Street (2013). Este trata-se um corretor de bolsa que conquista uma fortuna de forma fraudulenta e é assumido também por DiCaprio. Não obstante gerar alguma polémica relativamente à forma como Wall Street é encarada e visualizada, o filme notabilizou-se rapidamente pela capacidade de diferenciação e de reinvenção do seu orientador. Após outras goradas investidas no mundo da televisão, tais como Vinyl (retrata o mundo da música dos anos 70), o norte-americano está de volta com um trabalho que se baseará nas viagens de dois padres jesuítas portugueses até ao Japão durante o século XVII. Silence conta com o protagonismo de Andrew Garfield e de Liam Neeson, será lançado numa data natalícia e estará incutido com grande paixão e devoção do cineasta pelas habituais questões espirituais e pregadoras. O toque luso nestas jornadas missionárias não sairá beliscado por parte de Scorsese, que tentará manter-se à altura das exigências transitórias do meio do cinema.

Martin Scorsese é um dos expoentes máximos do cinema norte-americano. Da escola de outros como Steven Spielberg, Francis Ford Coppola ou Brian de Palma, o realizador soube readaptar-se à mudança dos tempos, embora sem nunca abdicar da sua essência criativa. Tudo isto ilustra-se num potencial que se reacende consoante a oportunidade brilha no contraste do seu imaginário cinematográfico. No auge de grandes relações de trabalho, destacam-se Robert De Niro e Leonardo DiCaprio como os pupilos que deram asas às ambições desmedidas de um jovem do Bronx. No conjunto de tantos documentários encetados (de nomes como Bob Dylan ou George Harrison), surgem ainda outros avulsos projetos na sétima arte, tais como a biografia de Mike Tyson, protagonizada com Jamie Foxx, e The Irishman, com o idílico trio Al Pacino, Robert De Niro e Joe Pesci. No passado, fica o processo criativo e conceptual de um pecúlio rico de experiências sensoriais e de fulgores de ação e de reação para todos os envolvidos na experiência de usufruir cinema. Um passado que se consolida na imagem veiculada no presente de que uma lenda viva se prontifica para dar mais de si a um futuro que à criatividade muito deve. Assim como o cinema deve a Martin Scorsese, o mundo deve ao cinema pelo despertar e pelo reenquadrar de ideias, crenças, posições e vocações. No meio de uma série incontável de galardões, celebra-se o legado de quem fez do cinema um êxito estudado e congregado.

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