Mário de Sá-Carneiro: “E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”

por Joana de Sousa,    9 Dezembro, 2017
Mário de Sá-Carneiro: “E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim”
Mário de Sá-Carneiro / DR
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Mário de Sá-Carneiros é um dos maiores mitos da poesia portuguesa, em especial da geração Orpheu, que despontou nas décadas de 1910 e de 1920. A sua associação a Fernando Pessoa é inevitável, contudo, a sua genialidade tem ainda vivido na sombra de Pessoa e no laço que os unia. A referência a Fernando Pessoa neste artigo é meramente elucidativa do quão importante este era na vida de Mário de Sá-Carneiro, pois é este último que pretendemos colocar, na sua monumental genialidade, a nu. Um retrato sem obscuridade das relações que este manteve com colegas de rebeldia literária, mas antes um retrato pleno da sua substância e ser.

Mário de Sá-Carneiro nasceu em Lisboa, a 19 de Maio de 1890. Nascido no seio de uma família abastada da alta burguesia, Sá-Carneiro ficou órfão de mãe quando tinha apenas dois anos, tendo, nessa altura, ficado entregue aos cuidados dos avós, que viviam na freguesia de Camarate, perto de Lisboa, onde veio a passar grande parte da sua infância. No ano de 1911, com 21 anos, muda-se para Coimbra, matriculando-se na Faculdade de Direito, porém, não chega a concluir o ano. No ano seguinte, viria a conhecer aquele que se tornaria no seu melhor amigo, Fernando Pessoa.

«Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…
Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num grande mar enganador d´espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quasi vivido ..
Quasi o amor, quase o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim – quasi a expansão…
Mas na minh´alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!»

Quasi (excerto)
«Dispersão», 1914

Descontente em Coimbra, muda-se para Paris com o objectivo de concluir os seus estudos académicos com auxílio financeiro do seu pai. Contudo, cedo deixa de frequentar as aulas na Universidade de Sorbonne e dedica-se a uma vida boémia pelas ruas parisienses. É em Paris que compõe a sua obra literária, entre 1912 até à sua morte, em 1916, retratando, na sua escrita, os seus desesperos e batalhas emocionais, e que, com pertinência também confidenciava essa sua dor ao amigo Fernando Pessoa em correspondência. Eram sensações que também ficaram imortalizadas nos seus contributos nas revistas Orpheu (onde chegou a ser diretor de uma edição) e Portugal Futurista, nas quais partilhou a sua poesia.

As suas frustrações, a sua humanidade triste e trágica ficam eternizadas na sua escrita, tão singular. Sá-Carneiro retratou, numa curta carreira literária, a solidão, o abandono, a dor de existir, o sentimento de inadaptabilidade e a carência como ninguém mais soube retratar. Um nevoeiro imenso pairava sobre a vida do autor que mais tarde desistiria de lutar pelo dia em que este nevoeiro se dissipava e o sol raiaria alto em seus dias. Imortalizadas, ficariam “Amizade” (1912, a sua primeira peça), “Princípio” (1912, um conjunto de romances), “A Confissão de Lúcio” (1914, talvez o mais conhecido da sua autoria, que envolve um triângulo amoroso num romance com caraterísticas policiais, onde o amor, a loucura e o suicídio são temas prementes), “Dispersão” (1914, a sua primeira obra lírica) e “Céu em Fogo” (1915, uma nova coleção de novelas). Póstumas seriam, para além da sua antologia poética e de volumes da sua correspondência com companheiros da revista Orpheu, “Indícios de Oiro” (1937, que engloba grande parte do material da sua autoria ainda por ser publicado).

«Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.»

Dispersão
«Dispersão», 1914

Entre os anos de 1913 e 1914, regressa a Lisboa com regularidade devido aos conflitos que assolavam a Europa com a I Guerra Mundial, regressando a Paris no verão de 1915. Durante este período, Sá-Carneiro e Pessoa continuam a trocar correspondência e, embora hoje em dia, apenas restem as cartas que Sá-Carneiro enviou, a imagem que este retrata com as suas palavras é tão vivida que é possível criar um rascunho imaginativo das cartas perdidas que Pessoa lhe haverá enviado. Contudo, a sua crescente tristeza é cada vez mais patente na correspondência com o seu amigo Pessoa, onde Mário de Sá-Carneiro se confessa como um homem perdido num labirinto dentro de si mesmo.

«Paris, 31 de Março de 1916

Meu Querido Amigo,

A menos de um milagre na próxima segunda-feira, 3 (ou mesmo na véspera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. É assim tal e qual – mas custa-me tanto a escrever esta carta pelo ridículo que sempre encontrei nas “cartas de despedida”… Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero: o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui… Já dera o que tinha a dar. Eu não me mato por coisa nenhuma: eu mato-me porque me coloquei pelas circunstâncias – ou melhor: fui colocado por elas, numa áurea temeridade – numa situação para a qual, a meus olhos, não há outra saída. Antes assim. É a única maneira de fazer o que devo fazer. Vivo há quinze dias uma vida como sempre sonhei: tive tudo durante eles: realizada a parte sexual, enfim, da minha obra – vivido o histerismo do seu ópio, as luas zebradas, os mosqueiros roxos da sua Ilusão. Podia ser feliz mais tempo, tudo me corre, psicologicamente, às mil maravilhas: mas não tenho dinheiro. […]»

Mário de Sá-Carneiro suicidou-se em Paris a 26 de Abril de 1916, com 25 anos de idade.

«Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa
E eu quero por força ir de burro!»

Fim
Paris, 1916

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