Erik Erikson, o psicanalista da identidade

por Lucas Brandão,    13 Setembro, 2017
Erik Erikson, o psicanalista da identidade
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Erik Erikson é um dos mais notáveis psicólogos e psicanalistas do século XX, herdando os desafios e as questões deixadas em aberto pelos seus predecessores. A personalidade surgiu como um dos principais temas de discussão pendentes em definições e decisões, teorizados e conceptualizados. Foi neste prisma que esta figura de marcada importância neste setor do saber se debruçou, propondo e assumindo-se como uma referência no estudo que se seguiu a toda a problemática levantada. Mesmo sem uma licenciatura na verdadeira aceção do termo, arrancou para uma carreira literária e académica de mérito, pautada pelo rigor e pela hierarquização ordenada e coerente daquilo que eram as premissas de uma personalização da própria personalidade.

Erik Salomonsen, futuramente renomeado Erik Homburger Erikson, nasceu a 15 de junho de 1902, na cidade alemã de Frankfurt, numa família com raízes judaicas. No entanto, foi filho de mãe solteira, visto que pouco se sabe sobre o pai, que fecundou com a sua progenitora na Dinamarca. Após Erik nascer, e depois de fugir do seu agregado familiar pela sua gravidade precoce, a mãe estudou enfermagem, e viria a casar-se com o psiquiatra do pequeno, que se viria a tornar no seu padrasto quando completou 9 anos, e que lhe emprestaria o apelido. Desta feita, e enquanto crescia, tornou-se conhecido por Erik Homberger, passando por dificuldades de adaptação e de integração, tanto pela sua aparência nórdica, como pela sua ascendência judaica.

Precisamente pelas diversas vicissitudes que orbitaram o seu crescimento, o desenvolvimento da identidade individual tornou-se uma das principais problemáticas do pensamento do jovem. Nesta altura, chegou a redigir sobre a sua confusão identitária, oscilando entre a neurose e a psicose de adolescência, conforme dizia o mesmo. Pela sua ambiguidade, só se conseguiu reequilibrar nesse rumo após criar o seu próprio apelido. Daí, adveio o seu sobrenome Erikson, que adotou em 1936, após naturalizar-se norte-americano. Na entrada para o gymnasium (escola secundária alemã), entrou com apetência para as humanidades e para as artes, embora o tenha concluído sem qualquer honra académica. Tentando alimentar o seu desejo para se tornar num célebre artista, desistiu dos estudos, e encetou um périplo entre Alemanha e Itália com um grupo de amigos, entre eles o futuro psicanalista e amigo de infância Peter Blos. Foi por esta altura que descobriu que o seu pai não era, por consanguinidade, o seu padrasto, pelo que se deteve nessa questão por algum tempo. Para além disso, foi alimentando dúvidas e discussões sobre, novamente, a identidade, tanto de cariz nacional, como religioso e étnico.

Aos 25 anos, esse seu amigo convidou-o a ensinar arte em Viena, numa pequena escola destinada a crianças cujos pais faziam psicanálise com a filha do pioneiro do método Sigmund Freud, Anna. Esta apercebeu-se da vocação e da sensibilidade que tinha com os petizes, e incentivou-o a estudar psicanálise no instituto dedicado ao efeito na capital austríaca. Erikson aceitou, e embarcou numa temporada de estudos, contando com aulas dadas por nomes consagrados da área, como Paul Federn, August Aichhorn, e Heinz Hartmann. A especialidade pela qual se sentiu mais interessado foi, precisamente, análise infantil, estagiando por algum tempo com Anna Freud. A prova final da sua graduação foi supervisionada por Helene Deutsch, outro vulto importante da psicanálise, onde realizou um tratamento incipiente a um adulto, e recebendo o diploma em 1933. Em simultâneo, estudou o método Montessori, aplicado à educação, destinado à perceção e à disrupção dos obstáculos à independência e ao desenvolvimento das crianças, desde idades precoces até à maturidade do processo da adolescência. Esta fase nutritiva da sua vida foi consolidada com o seu casamento, em 1931, com a dançarina canadiano-americana Joan Mowat Serson, onde se converteu ao cristianismo. Com ela, seria pai de Sue Bloland, que também seria psicoterapeuta e psicanalista, e que sentia que o seu pai se considerava inadequado a si mesmo, podendo, ao lado dos préstimos da sua companheira, alcançar o reconhecimento que lhe aliviaria essa sensação. Seria, no entanto, pai de mais dois filhos, entre eles, o sociólogo Kai T. Erikson.

Em alturas do nascimento do nazismo na Alemanha, e numa fase em que toda a literatura considerada subversiva ou oposta à ideologia era queimada, no espectro de uma ameaça bem plausível, Homberger decidiu, ao lado da sua esposa, mudar-se para a Copenhaga, com os seus jovens filhos. Não conseguindo a cidadania dinamarquesa pelos requisitos necessários para a obter, voltaram a emigrar, agora para os Estados Unidos, onde esse obstáculo não se punha. Em Boston, cidade onde o psicanalista passou a trabalhar, foi o primeiro a sê-lo estritamente para crianças, tendo assumido funções, tanto no hospital estadual, como no pólo de medicina da reputada faculdade de Harvard. Nesse período temporal, tornou-se um reputado clínico, com, em 1936, a chegar nova mudança, passando a lecionar na universidade de Yale, e trabalhando no seu instituto de relações humanas. O trabalho investigativo que realizou nestas universidades aprofundou o seu interesse pela psicanálise, e pelos laços que ligam a psicologia à antropologia. Nesta área, privou com nomes, como Ruth Benedict, ou Margaret Mead, que lhe convidaram a uma excursão a uma reserva índia, para estudar as crianças nativas da tribo Sioux.

1939 levou a família para a Califórnia, por convite da universidade desse estado a um estudo sobre o desenvolvimento infantil. Em San Francisco, criou um consultório de treino à psicanálise aplicada a crianças, trabalho que foi complementado por mais uma excursão, ao lado de Alfred Kroeber, a uma tribo, de forma a estudá-la minuciosamente, desta feita a Yurok. Esta bagagem psicológica e antropológica permitiu-lhe redigir uma obra de destaque nas áreas, de seu título “Childhood and Society” (1950), onde explanou toda a sua perspetiva do desenvolvimento psicossocial da criança, e onde realçou a importância do meio ambiente e da sociedade nessa estruturação. Pouco tempo depois, deixou a universidade onde trabalhava, após exigirem aos seus funcionários assinarem juramentos de lealdade e de rutura em relação a ideais radicais, à luz da Guerra Fria vigente. Recusando-se, saiu, e passou a lecionar no Austen Riggs Center, um estabelecimento de tratamento psiquiátrico no estado de Massachusetts, trabalhando com jovens emocionalmente atribulados. Em paralelo, tornou-se professor convidado da universidade de Pittsburgh, colaborando com os nomes de Benjamin Spock e de Fred Rogers.

Nos anos 60, o destino presenteou-lhe com um regresso a Harvard, onde lecionou desenvolvimento humano até 1970, ano da sua retirada do ensino. Três anos depois, receberia a maior honra nacional na área das humanidades, a Jefferson Lecture, por fruto dos seus trabalhos sobre a identidade humana. Nos quinze anos que se seguiam, continuaria a aflorar várias áreas das que vinha estudando até então, contando com alguma literatura para o homologar. Assim seria até 1994, ano em que partiria, no dia 12 de maio, no estado norte-americano de Massachussets.

Erikson foi um dos principais e pioneiros estudiosos na psicologia do ego, que o via como mais do que um servo do id (conceitos freudianos, onde a conjugação do superego [normas sociais e padrões éticos] e do id [contém os desejos e os traumas mais primitivos e, alguns deles, subsequentemente reprimidos], resultado no ego). O psicanalista conferia, ao ambiente, um papel crucial de crescimento, de ajuste e de perceção própria, capacitando-o como fator nuclear da formação da identidade. Tudo isto aplicado ao desenvolvimento individual, refletido e estudado numa obra que acabou por receber um Pulitzer em 1969, de seu título “Gandhi’s Truth”, para além de um National Book Award. Abordando o desenvolvimento como uma espécie de ciclo, apresentou-o, no plano da criança, como uma idade adulta emergente, resultante de uma adolescência prolongada e de uma estabilização física e mental no final deste processo.

No estudo da identidade, e das várias etapas que formulam tal ciclo, o norte-americano exorta para a importância de cada um aprender a gerir os extremos advindos de cada período, sem rejeitar totalmente os dois polos inerentes a estes. Esta teoria é a célebre teoria da personalidade, onde os opostos são postos em confronto, e trabalhados de forma a encontrar a virtude ótima em cada relação dialética, surgindo como uma premissa fulcral na psicologia do desenvolvimento. Assim, com ambas a embarcar numa viagem rumo à solução ideal, surge o plano de construir a melhor personalidade, estando esta dependente de uma série de vários fatores.

“Hope is both the earliest and the most indispensable virtue inherent in the state of being alive. If life is to be sustained hope must remain, even where confidence is wounded, trust impaired.”

Tudo começa com a etapa mais pueril e infantil, compreendida entre os primeiros dias e os dezoito meses de existência, conhecida por esperança – uma maior abertura à experiência que é proposta e colocada no caminho de cada um. Considerada a parte mais essencial da vida, é onde o bebé desenvolve a confiança ou desconfiança, fragmentada em vários pontos sociais e figurativos, estando a criança totalmente vulnerável e dependente de outros. A mãe é a figura que reflete as perceções de fiabilidade em si e no próximo, de forma bastante pessoal, e de personalidade, conduzindo a devida proteção ao bebé. Se o conseguir transmitir da melhor, a criança acabará por se desenvolver com esse sentido apurado, estando, no seu reverso, um halo de medo e de imprevisibilidade inconsistente do meio em seu redor, para além da sua própria personalidade.

O segundo estádio associa-se à vontade – aquilo que as crianças podem e acreditam fazer intencionalmente, com as restrições racionais existentes – e à dicotomia entre vergonha e autonomia. Indo do primeiro ano de idade aos três, a criança vai descobrindo os princípios da sua independência, com os pais a serem primordiais no incentivo do seu sentido de autonomia nas tarefas básicas diárias. Decisões simples e ações básicas surgem como o palco de ação de alguém que, não obstante muito dependente, ganha destreza individual, em especial no campo fisiológico. Desencorajá-las pode levá-las a alimentar uma dúvida interior, que se torna difícil de contornar até à maioridade, enquanto o oposto dispõe-lhes de segurança e de confiança naquilo que vão fazendo.

O terceiro traz o propósito – equilíbrio entre a iniciativa individual e a vontade de se envolver em contextos de grupo – no conflito entre iniciativa e culpa. Surgem os tempos de pré-escola, entre os três e os seis anos, em que surgem as questões de se a criança está capacitada de realizar tarefas um pouco mais complexas por si. Para além disso, a sua demonstração de poder e de presença ganha uma nova expressão, podendo levar ao desenvolvimento de um carisma e de um espírito de liderança. A existência de culpa, porém, não se torna problemática, pois, por norma, são vicissitudes que acabam a ser ultrapassadas com o tempo, embora se possa alimentar uma dúvida interna. Quanto à superação do obstáculo, traz a si ligada uma recompensa pela concretização dessa tarefa, capaz de assumir a iniciativa frequentemente.

A chegada da escola é designada como uma etapa distinta das três antecessoras, com a competência no choque entre construtivismo e inferioridade. Entre os seis e os onze anos, a criança compara o seu valor em relação aos outros, para além de o tentar granjear em ambiente escolar, e alimenta o orgulho próprio pelo que consegue fazer de bem, e pelo que consegue crescer. Dessa forma, reconhecem as disparidades entre as capacidades físicas, mentais e cognitivas entre si, cabendo ao professor um papel de árbitro e de mitigador das preocupações de inferioridade nutridas pelos seus alunos. A atenção para que nenhuma inquietação se crie no seio da criança é imperativo para que esta etapa seja estável e serena, com as motivações incutidas pelos agentes educacionais a estar, novamente, em evidência.

A adolescência traz, entre os doze e os dezoito anos, a fidelidade – viver de forma sintonizada com as normas e expectativas sociais – onde identidade se cruza com o papel, na integração de cada um num dado grupo ou na própria realidade, num plano cada vez mais independente e íntimo. Assiste-se ao desenvolvimento cada vez mais personalizado da identidade pessoal, identidade essa norteadora de todo o comportamento do agora adolescente. Aos pais, importa manter um papel vigilante, mas não castrador da exploração do seu eu, pois pode gerar confusão e hermetismo naquilo que é a definição clara e inequívoca da sua personalidade, para além de levar a inseguranças. É precisamente aqui que entra a questão do ego, onde se inicia a perceção de que este sintetiza as tentações e as regras existentes, formulando uma personalidade dentro dessas delimitações.

A primeira etapa do desenvolvimento adulto é o amor – capacidade de constituir relacionamentos significativos e prolongados com os outros – na disputa entre intimidade e isolamento. Entre os dezoito e os trinta e cinco anos, surge o estabelecimento das primeiras relações, eventualmente um casamento, e o fortalecimento das relações familiares, para além da descoberta de amigos para a vida. A construção dessas relações levaria a que a personalidade se tornasse mais autêntica e capaz de se interrelacionar com os outros, e com a sociedade como um todo. Quando estas são bem-sucedidas, o amor e o intimismo são notas marcantes e perseverantes, em elos duradouros; em caso de falha, no entanto, despoleta-se essa solidão e um isolamento que traçam indelevelmente esta fase da sua vida, para além de existir um menor sentido de si mesmo.

Na maturidade da idade adulta, entre os trinta e cinco e sessenta e quatro anos, surge o cuidado – quando esta fase se sente realizada e bem gerida – e o embate entre produtividade e estagnação, onde carreira e família adquirem a máxima preponderância. Considerando as suas prioridades, o indivíduo está numa fase em que, ou escolhe um caminho de evolução e de progressão, ou estagna, tanto profissional como pessoalmente. Em paralelo, surge o nascimento das suas crianças, e a sua integração social, para além da sua imersão em várias atividades grupais e familiares, conferindo ao adulto um sentido de propósito. Um sentido de pertença à sociedade, advinda dos proveitos e dos feitos profissionais e pessoais. Acontece, porém, existir um certo arrependimento de como a sua vida se proporcionou, gerando o sentimento oposto, e, dependente da reação em relação a isto, eventuais patologias do foro psicológico.

A sabedoria é a etapa que se prolonga dos sessenta e cinco até ao fim da vida do indivíduo, dividida entre integridade e desespero. É uma fase em que, retirando-se das suas incumbências profissionais, se torna mais recetivo àquilo que a vida lhe proporciona, e aceita, quase de forma redentora, aquilo que a sua vida foi, tanto as suas vitórias pessoais, como as derrotas. Se os arrependimentos se tornarem mais sonantes do que as concretizações, sentimentos abúlicos, como a amargura e o desespero, dominam o estado do indivíduo. A sabedoria, no auge da integridade da vida vivida, sumariza e formaliza o atingir da fase final do processo de desenvolvimento da personalidade, sem quaisquer constrangimentos de ordem existencial. A esposa do psicanalista, Joan, viria propor uma nona etapa, alcançada por aqueles que vivem entre os oitenta e os noventa anos. Redigindo sobre ele aos noventa e três anos, a autora apontou as preocupações e buscas inerentes a esta idade, para além das dificuldades diárias que levam a retornar, em termos conceptuais, ao primeiro estádio, e eventuais crises psicossociais.

Erik Erikson tornou-se célebre pela desconstrução da personalidade, a partir das suas diversas fases e dicotomias, e na afirmação do ramo da psicologia do desenvolvimento. O psicanalista desvendou, com sucesso, as peculiaridades das várias fases da construção da personalidade, plasmadas numa teoria que clarifica aquilo que é a humanidade como expressão e pensamento. O norte-americano versou, desta feita, com particular familiaridade, sem nunca obter uma licenciatura, mas baseando-se numa vida repleta de questões e de dúvidas. À sua proporção, um trabalho e uma obra de destaque no prisma do entendimento da identidade e de toda a sua arte.

“Healthy children will not fear life if their elders have integrity enough not to fear death.”

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