Eça, o meu primeiro

por M. J. Cruz,    23 Agosto, 2017
Eça, o meu primeiro
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O meu escritor preferido é e sempre será Eça de Queirós ou Queiroz, como preferirem os puristas. Os Maias marcaram-me a adolescência – devo ter trinta exemplares diferentes do livro na minha biblioteca – e a Cidade e as Serras falou comigo a nível pessoal como um migrante do meio urbano para o rural. O primo Basílio, O crime do padre Amaro, O mandarim, As cartas. Tudo o que ele escreveu é cânone da literatura portuguesa. Não lhe faço justiça nos meus textos. É uma injustiça que não vou corrigir. Eça guardo-o num canto secreto, só meu, como lembrança da última vez que fui verdadeiramente feliz. Tocar-lhe era corrompê-lo, manchá-lo pela minha existência suja, conspurcada por décadas onde fiz tudo errado. Eça permanece, assim, como o meu farol e  o final dos Maias como o melhor excerto literário que alguma vez li:

“Ega, em suma, concordava. Do que ele principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na Terra – porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em desilusão e poeira.

-Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo…Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correcto, que é o único que se deve ter na vida.

-Nem eu! – Acudiu Carlos com uma convicção decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a Rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde eles, certos de só encontrarem ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente, Carlos teve um largo gesto de contrariedade:

-Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje, para o jantar, um grande pato de paio com ervilhas.

E agora já era tarde, lembrou Ega. Então, Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e sínteses da existência, pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!

-Oh diabo!…E eu que disse ao Vilaça e aos rapazes para estarem no Bragança, pontualmente, às seis! Não aparecer por aí uma tipóia!…

-Espera! – Exclamou Ega – Lá vem um americano, ainda o apanhamos.

-Ainda o apanhamos!

Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:

-Que raiva ter esquecido o paiozinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentámos a teoria definitiva da existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma. Ega, ao lado, ajuntava, ofegante, atirando as pernas magras:

-Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…

A lanterna vermelha do americano, ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:

-Ainda o apanhamos!

-Ainda o apanhamos!

De novo a lanterna deslizou e fugiu. Então, para o apanhar o americano, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela Rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”

Antes dos primeiros existencialistas do século XX contemplarem o sentido da vida, já Eça nos dava algumas luzes sobre o significado de tudo, embora rapidamente tivesse encontrado uma maneira de contrariar a própria conclusão a que chegara.

Não.

Recuso-me a afundar o autor realista nos meus devaneios. Eça representa, para mim, um princípio e final de uma adolescência inocente, ingénua, cândida, marcada por experiências que ainda não tinham o poder de me definir. Isso aconteceu mais tarde, com Saramago, o maior escritor português que alguma vez viveu. A obsessão que tinha por ele não tem palavras. Li tudo, tenho todos os livros e no princípio dos meus vinte anos emulei o seu estilo de escrita em homenagem, à falta de melhores palavras, a um deus literário.

Saramago mudou-me. Os seus ensaios sobre a vivência humana, o estilo corrosivo, o tratamento por parte das autoridades nacionais, o exílio em Espanha, o ataque aos seus ideais de esquerda e a sua resistência ainda hoje me inspiram. Eça pode ser considerado a minha fundação, o pilar fundamental de tudo o que sou e escrevo. Saramago, por sua vez, é o tempero, as especiarias, o sal, o picante, a canela, tudo aquilo que tinha o poder de mudar o gosto e quebrar o gelo que existe dentro de nós.

Queria deixar claro que o meu foco e maiores influências residem, obviamente, em Nietzsche, Kafka, Camus e Bukowski, mas que antes disso, Eça e Saramago abriram caminho para o que encontro hoje todos os dias ao espelho; Eça, para sempre, um símbolo de inocência e ingenuidade, sinal de tempos em que pensava que sabia que sabia e Saramago, a representação máxima de que podemos encontrar sucesso e superar qualquer obstáculo com uma ponta de cinismo na ponta da caneta.

Luís de Camões, Fernando Pessoa – e muitos outros autores portugueses – merecem uma menção honrosa, mas nenhum me (a)bateu como Eça e Saramago. Respeito os autores, mas não quero falar do que não sei e do que não me influenciou. Depois de Saramago, encontrei Kafka que me mandou numa espiral depressivo-existencialista (serão sinónimos por agora?). Já escrevi bastante sobre o tema e não me quero alongar mais. Eça é o meu preferido por ter sido o primeiro, mas Kafka é meu, Kafka sou eu. As suas palavras ecoam em mim a cada segundo que passa:

“A book must be the axe for the frozen sea inside us.”

Aplico isso não só a livros, mas a tudo. Ou tento. Tudo o que experimentamos deve ser um machado para o mar gelado que existe dentro de nós. Se não for, qual é o propósito?

É a partir de Kafka que chego a Camus e à citação com que quero acabar este pequeno mini-ensaio sem moral aparente – nem tudo o que é dito ou escrito precisa ter significado:

“To love someone means relatively little; or, rather, that love is never strong enough to find the words befitting it.”

Por outras palavras, amar não chega, nunca é o suficiente e, por muito que se queira, as palavras – arte – são as verdadeiras portadoras do poder absoluto neste mundo e quem oferece palavras, um pouco de si, um pouco da sua arte, está a oferecer muito mais do que um simples acto de paixão. Camus escreveu isto e concluiu que se amariam em silêncio, pois as palavras eram demasiado fortes para traduzir um sentimento tão simples, tão rural, tão primal e animalesco como o amor.

Não sei se concordo, mas enquanto escritor, palavras é tudo o que posso oferecer, tudo o que tenho e, provavelmente, tudo o que sempre terei.

É com isto que concluo que:

Amei-te, amar-te-ei e amo-te com elas.

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