Dois mil e quinhentos anos depois, ‘As Suplicantes’ somos nós

por Tiago Mendes,    26 Junho, 2017
Dois mil e quinhentos anos depois, ‘As Suplicantes’ somos nós
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É pouco provável que, quando há dois mil e quinhentos anos Ésquilo escreveu as suas tragédias para serem apresentadas nas festas dionisíacas, imaginasse que a milhares de quilómetros de distância e de anos passados as histórias permanecessem vivas e actuantes. É esta a força que um texto como As Suplicantes traz em si: um trabalho criativo e estrutural de fôlego, que aos seus contemporâneos e sucedâneos inspirou a que fosse preservado; e que uma série de acasos permitiram que chegasse até nós, como uma das únicas sete peças do autor grego que hoje conhecemos integralmente (de um universo de largas dezenas que se julga terem sido escritas).

O Teatro do Bairro acolheu, entre os dias 16 e 18 de Junho, uma adaptação da obra. Tratou-se de uma produção da Evoé, uma escola de actores sediada em Lisboa. O elenco é constituído por actrizes e actores que frequentaram ao longo do ano lectivo um curso de cerca de doze horas semanais; nos últimos dois meses, atenções centradas na peça agora apresentada. Num trabalho de criação que teve a direcção de Cláudia Andrade, em colaboração com as próprias actrizes e actores da peça, As Suplicantes apresenta-se – de forma poética e coreografada – como um texto estranhamente urgente e contemporâneo.

Surgem a correr no hall onde o público aguarda a indicação para descer para a plateia. É ali, naquele lugar e momento improvável, que as danaides – oito, em representação das cinquenta originais – procuram um lugar de asilo. Ordenadas pelo seu pai a casarem-se contra a sua vontade, buscam no líder de Argos a protecção e a liberdade que clamam ter direito. Deambulam no meio de nós, como se as pudéssemos ajudar, antes de desaparecerem novamente, num correr desenfreado.

Sentamo-nos. Em menos de uma hora de espectáculo, somos conduzidos por uma linha narrativa mais linear do que o vocabulário adornado da literatura clássica poderia dar a entender. Ao contrário da maioria das tragédias gregas, o protagonista da peça é precisamente o coro feminino que nos fora apresentado minutos antes. Dividem diálogos, completam frases umas das outras, falam em uníssono, cantam, dançam, jogam com as respirações, coordenam-se em movimentos que ganham força pela expressão colectiva.

Passamos por várias linguagens teatrais, cada qual com o seu lugar no desenrolar da narrativa. Passagens em que o texto é transmitido apenas pelo filtro da emoção, com as actrizes imóveis, as palavras em catadupa na sua riqueza difícil de digerir à velocidade a que nos chegam. Momentos em que se salta à corda, em que se mascarram de terra, ou em que encenam por meio de sombras chinesas o mito de Io. Enrolam-se nas cortinas caídas nas laterais, embrulham-se num vasto plástico transparente. Estas acções conduzem-nos pela história, montam uma geografia mental e emotiva, são contexto e pretexto para conhecermos o destino daquelas que suplicam pela condição humana alvo de perseguição.

No final, dança-se ao som do ritmo quente e latino de ‘Mil Pasos‘, de Soha. O calor das guitarras e a dança, que subitamente nos atingem e contagiam, fazem a transposição para a intemporalidade d’ As Suplicantes. O próprio elenco quebra a barreira entre actor e personagem, ao apresentar-se pelo nome – ainda na estrutura interna da peça -, estabelecendo uma ligação entre as suas vidas e a das mulheres da tragédia grega que acabavam de representar. A causa de Ésquilo continua; não é exactamente a mesma, há valores que não são comuns. Mas, no Teatro do Bairro, dançou-se; e esperou-se que a súplica nos continue a conduzir por uma história humana que, provavelmente, vai durar mais dois mil e quinhentos anos.

Fotografias de: Evoé – Escola de Actores

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