‘Dersu Uzala’: um olhar sobre a humanidade

por Miguel Fernandes Duarte,    4 Agosto, 2016
‘Dersu Uzala’: um olhar sobre a humanidade
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Akira Kurosawa é essencialmente famoso pelos seus Jidaigeki, retratos da época feudal japonesa, para nós associadas maioritariamente aos samurais. Filmes como Ran, Os Sete Samurais e Kagemusha são exemplo disso, mas o realizador japonês é igualmente autor de filmes fora dessa era, como o são Rashomon (um dos filmes que marcam a descoberta comercial do cinema japonês no Ocidente) e Ikiru, longas-metragens que arrisco até sugerir serem melhores que os Jidaigeki, que alcançaram maior fama (sem qualquer demérito para estes).

Um outro filme que marca a filmografia de Kurosawa é Dersu Uzala, que está tão longe dos retratos samurais, ao ponto de não ter relação com o Japão. Ao se passar na Sibéria, com todo o filme falado em Russo, é o único filmado fora do país do sol nascente.

Dersu Uzala é um nativo Nainai, caçador solitário nas florestas siberianas, que certo dia se atravessa no caminho de uma pequena divisão do exército russo que percorre a Sibéria em missão cartográfica. Enquanto os soldados o encaram como alguém insólito, um louco na floresta, o capitão da divisão, Arsenyev, cria empatia com ele e convida-o para ser o seu guia, já que Dersu estava familiarizado com a zona. É assim que se cria a ligação entre os dois homens. O filme é aliás uma adaptação de um livro deste mesmo Capitão Arsenyev, no qual retrata esta mesma história.

Dersu espanta o Capitão (vocativo pelo qual o trata durante todo o decorrer do filme) com o seu estilo de vida, perfeitamente integrado na vida selvagem; fala com os animais e, mesmo sendo caçador, só tem como presas aqueles que lhe forem estritamente necessários para sobreviver. É inclusivamente com grande desprezo que Dersu se refere àqueles que montam armadilhas complexas na floresta para apanhar animais dos quais vendem a pele.

Naquele que é um dos momentos mais marcantes do filme, de uma beleza austera, o Capitão e Dersu separam-se do resto da companhia na tentativa de chegar a um longínquo lago gelado, no meio de planícies desoladoras e inóspitas, onde o branco do chão só é substituído por algumas ervas castanhas a sair da terra. É por ali que ambos se perdem ao tentar encontrar o caminho de volta para os seus companheiros; e é, enquanto o Sol se põe, que se apercebem que já não os vão conseguir encontrar antes da chegada da noite. Perante tal perspectiva, torna-se necessário cortar o maior número dessas tais ervas castanhas, para que se consigam proteger do frio rachante que irá chegar. Toda a filmagem desses momentos é impressionante, desde as sequências de ambos a cortar as ervas à maior velocidade possível, enquanto o Sol se põe, à forma como o Capitão é incentivado por Dersu a continuar, mesmo quando já está exausto e não se consegue manter em pé. Quando a certa altura deixa mesmo de conseguir e cai inconsciente, Dersu acaba a cobri-lo no tal abrigo, uma verdadeira obra de engenharia construída apenas com ervas, corda e neve, perfeito exemplo de como Dersu estava preparado para sobrevivência mesmo nas piores condições.

Tal feito não merece agradecimentos para o caçador Nainai, que o faria tanto pelo Capitão como por qualquer homem ou animal desconhecido que encontrasse naquelas condições. Dersu encontra cabanas isoladas na floresta e melhora as suas condições para possíveis caminhantes que aí possam pernoitar, mesmo que nunca os veja em toda a sua vida. É um homem bom, retrato de um humanismo que se vê muitas vezes ausente noutros exemplares da espécie humana. É curioso, e irónico até, que acabe, de certa forma, por ser essa bondade a precipitar as condições que causam o declínio de Dersu.

Descrever este como um filme heroico e acerca da amizade de dois homens é simplificar a questão. Nele interliga-se o espírito explorador e criador do Homem, que se expande para as zonas que não conhece e ocupa a Sibéria derrubando florestas para criar cidades, à profunda relação humana com a natureza. É patente o apelo do realizador por um tipo de vida em comunhão com a natureza, na qual os homens não destruam aquilo que têm em troco de um estilo de vida cada vez mais isolado dela. A cidade não é natural para Dersu e é por isso que ele se sente lá mal. Não suporta estar rodeado por betão em vez de árvores. E o impressionante é que ele sente isso numa cidade pequena, não numa grande metrópole. Aquilo que para nós seria rural, para Dersu é demasiado civilizado e inumano. É por isso que é tão trágica a história deste homem que, quando vê, literalmente, as suas faculdades diminuírem, perde o seu modo de subsistência e o seu propósito na vida. Será o nosso apegamento à cidade uma forma de contrariar a velhice, quando perdemos as capacidades de viver doutra forma? Sem ela, o fim é trágico, como para Dersu, que depois de uma vida heróica, enérgica e natural, acaba vítima da lei selvagem, sem os abrigos artificiais que a cidade lhe poderia dar.

Dersu Uzala, de Akira Kurosawa, vai estar em destaque no Espaço Nimas, em Lisboa, a partir de hoje (4 de Agosto).

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