‘Benji’ de Sun Kil Moon: no aniversário de um dos melhores álbuns da década

por Tiago Mendes,    11 Fevereiro, 2017
‘Benji’ de Sun Kil Moon: no aniversário de um dos melhores álbuns da década
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Artigo escrito originalmente em 2017

Faz hoje três anos que o mundo ouviu nascer Benji, o sexto álbum de estúdio de Sun Kil Moon (projecto de Mark Kozelek). Benji – exercício sublime de contemporary folk singer-songwriter – é recebido pela crítica em Fevereiro de 2014 de forma algo polarizada, embora, feita a devida ponderação, as notas de apreço tenham sido mais que as de desagrado. Só o tempo o poderá confirmar, mas a poesia e musicalidade de Benji poderão vir a consagrá-lo como um dos melhores álbuns desta década. Não tendo todas as cartas na mão, joga as que tem com precisão emocional e gloriosa impotência.

Os primeiros quinze segundos protagonizam duas guitarras, coordenadas pouco matematicamente, introduzindo uma história. Não vai ser um percurso fácil, rapidamente o percebemos. Vamos ouvir a história da prima em segundo grau que morreu numa explosão provocada por aerossóis, quando foi deitar o lixo fora. Esta mulher, Carissa, não será esquecida: Mark Kozelek sente que a sua missão é dar a conhecer o seu nome, nos discos que editar e nos concertos que tocar à volta do mundo. Acho que cumpre aquilo a que se compromete: ouvir “Carissa” é expormo-nos à dor da perda e da aleatoriedade do fim. Sentimo-nos ridículos, e próximos daquela prima em segundo grau. Quando a guitarra, no fim de cada refrão, canta a melodia em queda, percebemos que também um dia cairemos.

Uma das grandes riquezas de Benji está na forma autêntica e despretensiosa com que se comunica. É um álbum que conta histórias. Histórias dolorosas. Se tivéssemos de reduzi-lo a uma só palavra, teria de ser morte. A morte dos outros: dos familiares, dos amigos, dos conhecidos, de desconhecidos; a morte eminente que a velhice anuncia, o medo de perder os que amamos; e a forma que arranjamos de lidar com tudo isto, neste planeta complicado em que vivemos (“Dogs”). Mas também há vida: e por isso somos testemunhas de episódios de infância, de memórias difusas polvilhadas de pormenores inúteis, de episódios de adolescência e juventude que nos fazem soar o alarme de too much information. Há ainda lugar para considerações tecidas como que em directo, a quebrar a quarta parede narrativa. O álbum tem momentos de tal forma auto-referenciais, colocando em cima da mesa o próprio trabalho que é fazer música, que se tornam num exercício quase embaraçoso: “Woke up this morning and it occurred I needed one more track to finish up my record”, confessa Kozelek, na última faixa. Quão mais sincero é possível ser-se?

As letras são de uma beleza e autenticidade raras, mas a música não lhes fica muito atrás. As guitarras sabem acompanhar as palavras, como se estivessem atentas às emoções e aos planos narrativos, e quisessem dar a sua contribuição. Muitas vezes, apenas por meio da repetição e da aridez: mas até esse minimalismo acaba por se revelar importante, tanto por respeitar a monocromia vocal e o cinismo emocional, como por permitir o destaque de momentos de pontual dinâmica no álbum. Que apontamentos são estes? Não consigo deixar de me arrepiar com a entrada do piano após a primeira referência à avó, na “Micheline”, e a carga emocional que ele acarreta. Com o coro fantasmagórico e os tempos de respiração que brotam por dois momentos na “I Watched The Film The Song Remains The Same”. A guitarra (será mesmo de Nels Cline?), que entra a brilhar assim que é citada, na “I Love My Dad”. E o saxofone que vem encerrar a última música, “Ben’s My Friend: canção que soa, estranha e inexplicavelmente, tão despropositada quanto necessária.

Mark Kozelek, quer entoando melodias mais tradicionais, quer nas suas incursões spoken-word em determinadas faixas, está presente, de corpo e alma. Convoca-se e expõe-se, tal como é: com defeitos, fragilidades, medos e paixões. Expressa-se por meio de poemas excepcionais. A estrutura interna de “Truck Driver” é de uma beleza assombrosa; os apontamentos mnemónicos de “Jim Wise”, nas imagens que guarda daquele dia, vêm atestar uma reflexividade que poderia passar despercebida na restante letra. E “Pray for Newtown” coloca por palavras aquilo que queremos esquecer, ou não queremos admitir: é um confronto que agradeceríamos não termos de travar. Esta última música é um exemplo acutilante do poder com que Kozelek interpreta vocalmente estas canções: não tem medo de cuspir sobre a sua hipocrisia, que é a nossa.

Benji é um álbum humano, que dá espaço, ao longo de uma hora e um minuto, à tristeza, à incompreensão, ao medo, à alegria das memórias e à apatia do dia-a-dia. Fá-lo de uma forma musicalmente simples e sublime. Se vale a pena ser descoberto? Perder-se tempo em múltiplas audições, com as letras ao lado, a absorver as guitarras e as dores? A relacionarmos todas estas estranhas e distantes histórias com a nossa própria vida? Acho que não só vale a pena, como é necessário. E, no fim, aprendermos a dançar com a última música, que nos relembra que a vida continua, mesmo quando achávamos que já não seria possível.

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