As várias camadas de cor de Jay Som em ‘Everybody Works’

por Tiago Mendes,    22 Março, 2017
As várias camadas de cor de Jay Som em ‘Everybody Works’
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As primeiras notas de Everybody Works, com a sua entrada orquestral, agarram-nos de imediato; quase reminiscentes da abertura de Funeral, dos Arcade Fire. Não sabemos bem que viagem será esta, embora nos movimentemos nos caminhos do indie pop e indie rock. A composição artística que dá cara ao álbum ajuda-nos a perceber os cruzamentos de estilo que nos aguardam: e é uma das capas mais bonitas do ano, num jogo de transparências e sobreposições entre as diversas camadas de azul e vermelho. Jay Som é o nome artístico de Melina Duterte, artista californiana de 22 anos, filha de pais filipinos. A sua história é cada vez menos rara, mas não deixa de fascinar cada vez que a encontramos: Melina é a compositora, multi-instrumentista e produtora de todas as suas canções. Lança-se no bandcamp e é pescada por uma editora indie de renome – neste caso, a Polyvinyl. Após ver reeditado em Dezembro passado o seu EP de estreia, Turn Into, vê agora nascer o seu primeiro álbum de estúdio completo.

Everybody Works é um espelho do método de trabalho e da própria personalidade de Melina Duterte. A diversidade de estilos é deslumbrante, principalmente pela forma como o álbum mantém uma qualidade de performance instrumental e uma coesão sónica de música para música. Quer seja por meio de uma atmosfera mais rock (“The Bus Song”), recorrendo aos riffs de shoegaze (“1 Billion Dogs”), ou em incursões inesperadas no universo funk e R&B (“One More Time, Please”), o álbum flui. Há espaço ainda para o pop, principalmente nas melodias de alguns refrões, simples e viciantes – Melina diz que E-mo-tion, de Carly Rae Jepsen, influenciou o seu trabalho. Não se trata, à partida, de uma referência óbvia, mas compreende-se ao ouvir algumas das linhas melódicas. Aliando os arranjos intrincados e um trabalho de composição relativamente poupado, Jay Som criou um álbum rico e colorido.

No Verão de 2016, Melina realizou uma tour em conjunto com Mitski e Japanese Breakfast. Há demasiadas semelhanças entre os três projectos para se tratar de uma mera coincidência: são as três mulheres americanas de ascendência asiática, com projectos a solo, e sonoridades não muito distantes na cena indie. Em entrevista à Pitchfork, Melina Duterte afirma que canalizou a energia e o sentido de missão que trouxe dessa tour para a gravação de Everybody Works. O seu quarto, transformado num autêntico estúdio caseiro (com direito a revestimento acústico de paredes, uma bateria a ocupar demasiada área da divisão, e seis guitarras), foi o lugar onde tudo nasceu. O processo é reminiscente de Kevin Parker dos Tame Impala, e a escala recorda-nos Alex G.

A diversidade instrumental que encontramos ao longo do álbum surpreende, e há momentos em custa acreditar que foi uma única pessoa que gravou tudo o que ouvimos. Para além das guitarras que vão guiando as canções, temos linhas de baixo com atitude, teclados, trompete, e até um acordeão. Em termos instrumentais, trata-se de um trabalho eloquente; um pouco em contraste com a performance vocal. A voz baixa e quase aborrecida da cantora acaba por definir muita de personalidade do álbum, cujas letras reflectem angústias existenciais e uma certa tristeza evidente. Mas mesmo esta atitude desinteressada e apática contribuem para o todo, criando um contraste dinâmico e sugestivo na experiência da audição.

A última faixa, “For Light”, é o momento mais fulgurante e importante do álbum. Com o seu crescendo épico, volta a remeter-nos para o imaginário dos Arcade Fire (eis o acordeão, em todo o seu esplendor, no clímax e resolução). É uma canção brilhante, que não está distante dos épicos “Take Care” e “Irene” com que os Beach House encerraram os seus álbuns de 2010 e 2012. No mantra inspirado “I’ll be right on time / Open blinds for light / Won’t forget to climb”, as palavras querem resgatar-nos, e impulsionar-nos ao muito mais de que somos capazes. A canção é tão forte que nos faz reequacionar o resto do álbum à sua luz; e é como se sentíssemos uma tímida esperança que Jay Som escolha avançar por aqui, de entre a montra de géneros em que se movimenta tão bem. Entre as muitas experiências, esta parece ser a que emocionalmente melhor resulta: as camadas de som em crescendo, com recurso a orquestração brilhante e esperançada. Ficamos sedentos de mais, Jay Som.

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