As orientações do maestro Ennio Morricone

por Lucas Brandão,    9 Novembro, 2017
As orientações do maestro Ennio Morricone
Fotografia de Il Fatto Quotidiano / Roberto Serra / Iguana Press (2012)
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Foi na “bota” da Europa que alguns dos melhores artistas de todos os tempos emergiram, tais como os renascentistas Leonardo da Vinci, Michelangelo ou Rafael Sanzio. Séculos volvidos, a tendência para a produção artística de grande valor prevaleceu e a Itália orgulha-se de um filho pródigo voltado para a música. Com um currículo repleto de bandas sonoras dos mais diversos filmes, Ennio Morricone foi um colosso no que toca à associação do mundo da música com o do universo do cinema. Com o “toque de Midas” da composição, o europeu tinha o condão de conceder o complemento necessário para que nenhum detalha impregnado num filme passe despercebido.

Nascido na capital italiana de Roma, a 10 de novembro de 1926, Ennio Morricone começou a escrever as suas primeiras composições na pueril idade de 6 anos e entrou no conservatório com 12, completando um programa educativo em 6 meses, sendo que, na teoria, seria lecionado em 4 anos. Estudando o trompete, composição e música coral, o transalpino começou a desenvolver os seus primeiros trabalhos para peças de teatro, adaptando-se este tanto a piano como a vocal.

Após ganhar notoriedade a compor para dramas radiofónicos, a transição para o cinema ocorreu após alicerçar trabalhos dos quais estavam já encarregues outros compositores reputados e ao estabelecer parcerias com os mesmos, como com os seus compatriotas Armando Trovajoli e Carlo Savina. Já em 1960, dirigiu a sua primeira composição a solo num filme de Franco Rossi, designado por Morte Di Un Amico. Com influências de jazz na sua formação, o compositor aplicou-as na corrente cultural avant-garde que grassou em Itália na década de 60, formando até um grupo com outros compositores transalpinos denominado Gruppo de Improvvisazione di Nuova Consonanza (G.I.N.C.). Nos trabalhos desenvolvidos pela conglomeração, predominava a existência de improvisações, novos métodos musicais e a aplicação de alguns ruídos pouco usuais então na tradicional linha da produção musical europeia. Ennio Morricone rapidamente se viu como o líder do grupo e, para além de tocar trompete, ganhou uma notoriedade internacional que lhe deu asas para trabalhar em Hollywood. Com uma escola artística muito interessante e vindo a compor já temas simples mas memoráveis no panorama cinematográfico, no que às comédias italianas em especial toca, estava este músico mais pronto que nunca para partir para Ocidente.

Após inúmeros trabalhos no seu país natal, o qual nunca esqueceu na sua profícua e duradoura carreira, o compositor afirmou-se plenamente na realização de bandas sonoras de filmes conhecidos como “Spaghetti Westerns”. Levou consigo o amigo de infância e habilidoso com vários instrumentos musicais Alessandro Alessandroni e a cantora Edda Dell’Orso, construindo assim uma relação profissional que perdurou durante e anos e em inúmeros trabalhos. Estabelecendo uma sinergia com o também mítico realizador italiano Sergio Leone, Ennio Morricone deu azo à sua versatilidade e adornou as músicas típicas do faroeste, dotadas de grande profundidade e mistério, com elementos caraterísticos do contexto do filme, tais como tiros, cavalgadas ou assobios. Três dos seus contributos mais conhecidos são: A Fistful of Dollars (1964), The Good, the Bad and the Ugly (1966), e uma das mais vendidas até então, Once Upon a Time in the West (1968). Só esta última vendeu mais de 10 milhões de unidades por todo o mundo, catapultando a sustentabilidade financeira de Morricone para um nível bastante confortável. Nestas bandas sonoras, estão incorporadas algumas das mais célebres melodias de todos os tempos e que permanecem na memória dos cinéfilos, como The Ecstasy of Gold, que viria a ser o sustento de imensos trabalhos de grupos musicais vindouros; ou A Man with Harmonica. O último trabalho da frutífera parceria com o realizador Sergio Leone surgiu em Once Upon a Time in America (1984), vindo este a falecer cinco anos depois.

Granjeada a fatia catalisadora da sua carreira enquanto compositor de bandas sonoras para trabalhos cinematográficos, os galardões viriam ainda a emergir na sua carreira. Days of Heaven (1978), The Mission (1986), The Untouchables (1987), Bugsy (1991) e Malèna (2001) foram os cinco filmes que concederam nomeações para Óscares de Melhor Banda Sonora. A sua polivalência levou-o a compor bandas sonoras de quase todos os géneros possíveis de filmes, passando pelos habituais dramas até aos mais aterradores. Um outro trabalho que marcou a carreira do compositor foi Cinema Paradiso (1988), trabalho exclusivamente italiano onde viria a arrecadar um galardão da British Academy of Films and Television Arts (BAFTA).

Uma interessante peculiaridade da sua carreira é a de que nunca abandonou a cidade que o viu nascer (Roma) para fazer as suas composições e nunca aprendeu a falar inglês, passando esta evidência despercebida com a sua versatilidade tanto como compositor para diversos tipos de trabalhos artísticos como nas funções de maestro e nas de diretor dos mesmos. Abdicando de viajar o máximo possível, o italiano é também conhecido pela originalidade das suas composições musicais, elaborando-as sempre do zero e abdicando de usar elementos predefinidos e já existentes. Atualmente, no mundo do cinema, destaca-se a reciclagem do norte-americano Quentin Tarantino de vários êxitos do compositor em filmes como Kill Bill (2003), Death Proof (2007), Inglorious Basterds (2009), Django Unchained (2012), e The Hateful Eight (2015)Foi com este filme que arrecadou o seu primeiro Óscar, após cinco nomeações e um galardão honorário, no ano de 2007.

Com um legado que se estende por mais de 6 décadas e de 500 composições para filmes, Ennio Morricone é um satélite que orbita tanto no planeta da música como no do cinema, fazendo a conexão idílica entre os mesmos.Não colocando os seus trabalhos no cinema acima dos exclusivamente ligados à música, inaugurou com três homólogos músicos o Forum Music Village romano nos finais da década de 60 e continua a deslumbrar como maestro de várias orquestras que atuam pelo mundo fora. Com um legado quase impossível de ser descrito num finito número de parágrafos, importa reforçar o caráter fascinante e unificador das composições musicais que reforçam já a aura única que cada filme transporta. Se já não bastasse que, pelo seu enredo e personagens, nos maravilhasse, a varinha mágica de Ennio Morricone dá uma fragrância de musicalidade etérea à história transmitida.

Passando pelas praias mais nebulosas e tormentosas, onde a tónica se encontrava nos sons mais impactantes e trepidantes, até às mais tranquilas e paradisíacas, onde marca o seu passo com ritmos angelicais e com uma fluidez onírica, este italiano é o perfeito exemplo de um enorme compositor de música e de uma versatilidade artística incomum. Ennio Morricone era, assim, dotado de uma capacidade de adaptação fantástica e venerado pelos compositores de sucessivas gerações, sendo Morricone um dos maestros a abençoar o matrimónio entre a música e o cinema. A transposição prática das suas notas são encantadoras e poucos são aqueles que não as respiram com aquele amor que a música sabe bem originar. Eis “Maestro Morricone”.

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