As ilhas arquitectónicas nos ‘Passos Perdidos’ de Paulo Varela Gomes

por Miguel Fernandes Duarte,    22 Maio, 2016
As ilhas arquitectónicas nos ‘Passos Perdidos’ de Paulo Varela Gomes
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Paulo Varela Gomes faleceu há umas semanas, no dia 30 de Abril de 2016. Sabemos que tomou a decisão de se dedicar plenamente à escrita quando soube do seu diagnóstico de cancro terminal. A doença leva-o, mas ainda lhe dá 4 anos a partir do diagnóstico, tempo suficiente para que nos deixe, além deste Passos Perdidos, um livro de contos e mais três romances (todos com carimbo da Edições Tinta-da-China), de entre os quais se destaca Hotel, publicado em 2014 e vencedor do prémio PEN Narrativa 2015.

Passos Perdidos é, isolando apenas o fio narrativo, uma história à volta de duas personagens, Anna W. e C. Brandon, ela francesa, ele inglês, passada sobretudo em movimento, pela Bélgica, por Malta, pela Índia, por uma colecção de sítios.

Mas no início não conhecemos C.  Brandon; no início Anna W. está só na remota ilha de Santa Helena, onde a morte de Napoleão, durante o seu exílio de seis meses por lá, traz à ilha atracção turística. Peculiar é Anna W., não tendo qualquer fascínio pelo imperador Francês, ter escolhido cumprir funções de directora dos Domínios Nacionais Franceses num local onde a única razão para a França destacar para lá alguém se prende com os locais por onde Napoleão andou há quase 200 anos. O que leva Anna W. a isolar-se num local como este é o seu fascínio por ilhas, fascínio que marca o próprio momento em que C. Brandon e Anna W. se conhecem no Panteão parisiense. Enquanto C. Brandon discursava para os seus alunos, Anna W. interrompe-o para marcar as diferenças deste edifício para com aquele no qual foi, supostamente, inspirado, dizendo que “O Panteão de Roma é como uma ilha e esta igreja não”. Esta frase marca, aliás, um ponto de partida para as temáticas deste livro.

Conhecem-se nessa Paris, de onde ela é natural, mas os seus encontros, esparsos e, ao mesmo tempo, regulares, arrastam-nos com eles para uma infinidade de destinos. C. Brandon busca pelo mundo as salas dos passos perdidos, ou seja,

“salas de espera tanto dos tribunais, como das estações de caminho-de-ferro e dos parlamentos, lugares onde todos os passos estão efectivamente perdidos porque, na nulidade desses espaços inertes, sem função que não seja servir outros espaços, entra-se na esperança de poder sair o mais depressa possível. Neste sentido, explica C. Brandon, as salas dos passos perdidos partilham com os cenotáfios e outros monumentos comemorativos, como os arcos de triunfo, o facto de serem espaços que podem ser dedicados à distracção e até ao sono, mas também à imaginação e à memória, ou à observação do próprio espaço, ocupações cuja inutilidade imediata e estatuto expectante tornam a arquitectura paradoxalmente mais visível do que seria possível nos lugares onde as pessoas estão a trabalhar.”

A imaginação, memória e observação espacial a que o autor faz referência acima são presença assídua ao longo de toda a obra e adquirem um grau de destaque muito maior que o dispensado propriamente à narrativa e às personagens. O foco posiciona-se sobre junção entre estes elementos e as constantes deambulações históricas, filosóficas, arquitectónicas, culturais, e por aí fora, que Paulo Varela Gomes tem tanto gosto e talento a fazer. E fá-lo quando quer e bem lhe apetece. Interrompe constantemente a narração para acrescentar factos, esclarecer detalhes, contribuir com um pouco mais de informação sobre o que está a servir de fundo.

Referências à vida do próprio autor são regulares, principalmente aquando da viagem à Índia, onde mistura constantemente os acontecimentos presenciados por Anna W. e C. Brandon com os acontecimentos vividos por ele, a sua mulher, e um casal amigo durante a sua viagem à Índia. É até bastante engraçada a forma como ele tenta mostrar quão diferentes (ou iguais) são as reacções tidas pelas personagens dos livros em relação às reacções tidas por ele, pela mulher e o casal amigo, quando face às mesmas situações. Situações como esta levam a que, apesar de algumas diferenças, seja difícil dissociar a personagem de C. Brandon do próprio autor, sentindo o leitor que, quando Paulo Varela Gomes não explícita a diferença entre o seu comportamento e o de C. Brandon, autor e personagem são o mesmo.

A própria busca pelas salas dos passos perdidos foi, também, uma busca de Paulo Varela Gomes, que, referindo-se a si próprio durante o livro, afirma que “o autor, quando ainda se dedicava à elusiva prática da historiografia académica da arquitectura e da arte, pensou que gostaria de escrever, em futuro incerto, um livro acerca desse tema”. Esse hipotético livro ganha forma neste livro, que se torna numa versão literária, escrita, dessas mesmas salas de passos perdidos. Um espaço onde cabem imensas dimensões, algumas aparentemente paradoxais, e onde, num romance, as palavras acabam a destacar mais a arquitectura do que, por exemplo, num livro onde as imagens sejam o foco. Essas imagens, não aparecendo de forma directa no livro, acabam, curiosamente, por figurar sempre ao longo do mesmo de forma indirecta. Somos frequentemente encorajados, pelo autor, a procurar online imagens do que está a ser descrito, culminando na ausência de descrições físicas das duas personagens principais, Anna W. e C. Brandon, que nos são apresentadas como sendo, cada uma, iguais aos actores Alicia Vikander e Laurence Harvey. Momentos desconcertantes que fogem aos cânones do género. E por falar em género, é também desconcertante a forma como Paulo Varela Gomes se refere no feminino a quem está a ler, como “a leitora”. Se, por um lado, se poderia interpretar isso como uma idealização de um leitor mulher, feminino, ou como uma sugestão de que são mais as mulheres que lêem que os homens, esta referência ao leitor como entidade feminina parece-se mais com uma tentativa de retirar a um homem a sua zona de conforto que, ao se ver referido como uma mulher, é inegavelmente obrigado a questionar-se acerca do papel das designações de género.

“Passos Perdidos”, de Paulo Varela Gomes, está disponível nas livrarias, com o selo da Tinta-da-China, pelo P.V.P. de 18,90€. Aqui podem ler um excerto do início deste belo livro.

Fotografia de leplaytime

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