As dores e os prazeres de se escrever

por Lucas Brandão,    23 Fevereiro, 2017
As dores e os prazeres de se escrever
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Uma folha em branco. Ou, ajustando às novas modas, um monitor em branco. Aí está ele/a, convidando-nos para embarcarmos com eles numa jornada de proveito mútuo. Deste lado, proporcionamos uma história. Do outro, dão-nos a oportunidade de a contar. A diferença é que, aqui, a eternizamos. Não sai do suporte onde depositamos tudo aquilo que desejamos apresentar ao nosso amigo em branco. De repente, vemos o nosso anónimo companheiro a preencher-se de ideias, de emoções, de reações. Tudo isto na forma da representação semântica, sintática e estrutural que formaliza o texto. Damos por nós com a missão cumprida, com os desígnios que nos levaram a encarar o rosto branco realizados. Falta relatar tudo aquilo que se experiencia na mudança do vazio para o cheio.

Costuma custar tanto o arranque. Como custa escrever aquelas primeiras palavras de uma mensagem que se arrasta num discurso mais ou menos floreado da nossa parte. É preciso dar um toque estilístico personalizado, uma coerência de ideias que não se alcança de um dia para o outro. Requer tempo, requer um compasso de tempo que se cumpre consoante o fluxo de ideias se expressa. Até podíamos ir buscar o fluxo de consciência, o tal que nos metralha com regularidade na cabeça. É o mesmo que ajuda a passar as ideias para o papel ou para a cara branca que, subitamente, se torna lívida em reações inesperadas. Ficamos à espera do que o outro lado está para oferecer, isto para além da chance de nos cumprirmos nas nossas experiências vividas e imaginadas.

As dores de se escrever já foram citadas pelo nosso amigo Fernando Pessoa, embora com outros contornos. É difícil transmutar aquilo que se sente, aquilo que reside na memória da experiência para a linguagem, para a materialização da ideia. Também isso se torna complicado. Nem sempre é a forma vaga com a qual nos convidam para darmos asas à escrita. Muitas vezes, custa-nos a nós dar formatura àquilo que sentimos e que queremos exprimir mas nem sabemos como. É um desafio para nós mesmos encontrar mecanismos de resolução destas intempéries. Não nos é confortável estar perante um caso em que queremos brotar flores num canteiro e, por medo de sentirmos uma dada reação alérgica ou de sermos picados por um inseto voador qualquer, não nos atrevemos a fazê-lo. Estamos sempre condicionados pelo longo mas estreito caminho que nos vincula à profundidade do que contamos. Essas constantes inclinações tornam-se estranhas a quem pensa que isto é um caminho liso e sereno.

A razão é a tal dimensão que nos possibilita que as histórias ganhem formas e matérias, sendo elas mais ou menos rugosas, mais ou menos coloridas, mais ou menos geométricas. Afinal de contas, a geometria que nos interessa é a de sentir que a nossa alma se sente correspondida. Isto é, sente que a verdade está lá, que a representação não se torna enviesada pelo que é mais fácil ou sorrateiro. É com uma natural e embevecida felicidade que nos vemos cumpridos, tanto ao nível do estilo como ao nível da ideia. Por muito que custe, – e que o digam os nossos mais estimados escritores – é com algum sentido de urgência que nos vemos impelidos a construir os moldes dos nossos esplendores arquitetónicos. Porque, como todos sabemos, também a mente tem a sua arquitetura própria, assim como tudo a que esta dá origem. Já viram o prazer que temos em ser artistas, escritores, arquitetos e trovadores ao mesmo tempo?

À boa maneira medieval, podemos brincar em cantigas e podemos desdobrá-las naquelas para o amigo (onde a saudade predomina), para o amor (onde se descortina e se revela aquilo que sentimos com retumbância) e para os alvos do nosso escárnio e maldizer (atire a primeira pedra quem não as faça). O que conta é o valor e a identidade que incutimos nas palavras e no encadeamento que a estas conferimos. A nossa virtude, por muito que custe, salta à vista para a folha que se vai preenchendo. Deleitada com aquilo que lhe emprestamos, retribui-nos com o preenchimento do coração e da mente, com uma paz de alma difícil de ser replicada. Escrever dá-nos essa oportunidade. Mais do que nos confessarmos, aproveita e potencia o valor da partilha, um dos maiores que temos entre nós. Dar a conhecer ao próximo aquilo que somos, aquilo que fazemos, aquilo que imaginamos. Se querem globalização, é por aqui o caminho. Não que seja somente pela escrita mas a dar-nos a conhecer. Uma face branca é o começo, é o transporte daquilo que queremos apresentar ao mundo.

Tal e qual como quando confrontamos os maiores desafios do mundo pela primeira vez, tudo nos parece desproporcional em relação ao nosso potencial. Assim que, de caneta em riste, vamos superando os problemas e começamos a viver, tudo muda. A escrita é, afinal, um dos mais autênticos paralelismos com aquilo que somos e aquilo que vamos tendo pela frente. Enquanto se esclarece a alma, o mundo vai encurtando e encurtando até ficar, efervescente mas pleno, em cima da nossa palma.

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