Animateatro, um coração a bater na tua rua

por Tiago Mendes,    20 Fevereiro, 2017
Animateatro, um coração a bater na tua rua
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Bate um coração na minha rua. Bem, não é exactamente a minha rua, mas não moro longe, e poderia ser a minha – tal como poderia ser a tua. Tão pouco se trata de um coração literal. Mas que bate, bate. A cave direita do nº4 da travessa José Maria Vieira, na Amora, concelho do Seixal, é casa de uma das mais vibrantes companhias de teatro da margem sul do Tejo. Para o mundo, somos subúrbio: mas são lugares como a Animateatro que nos ajudam a acreditar que o centro é onde o coração bate, onde quer que isso aconteça.

A Animateatro nasce como ideia no ano 2000, é constituída formal e legalmente em 2002, e no verão de 2005 instala-se naquele espaço enquanto associação sem fins lucrativos. Uma estrutura de génese profissional dedicada ao teatro e às restantes artes performativas. Plataforma de criação, produção, e formação, cobrindo os planos artístico, educativo e social. Ao longo dos seus quinze anos de história, a Animateatro tem produzido criações próprias; acolhido outras companhias no seu espaço; programado para público infantil; itinerado pelo país com as suas produções; formado pessoas de todas as idades em cursos de teatro. Tudo isto executa numa base regular: quase todas as semanas durante quase todo o ano. Fá-lo pautando-se pelos valores da inquietude, da pertinência, da acutilância e da exigência artística.

O que move uma instituição como esta? Segundo Lina Ramos, da direcção artística, a gestão pauta-se por um equilíbrio entre a ideia e o pragmatismo, entre o trabalho criativo e o lado mais prático da produção. As criações teatrais nascem de ideias, são enriquecidas pela mensagem que querem transmitir, ganham corpo na construção constante do trabalho performativo, e tomam a forma com que pretendem alcançar o seu público-alvo. Como instituição não subsidiada pelo governo central, a Animateatro não pode descurar a dimensão orçamental que, neste momento, garante o trabalho dedicado de uma equipa de sete pessoas. Mas a motivação primeira, mais que a monetária, é fazer o que o coração pede.

“Encanto-me muito facilmente, e sinto necessidade de comunicar o que é belo”, partilha Lina Ramos. E conta-nos uma história, como as gentes do teatro o sabem fazer tão bem: há algumas semanas ouviu alguém desabafar que tinha muitas saudades de quando era mais nova e jogava o Monopólio. As circunstâncias não o permitiram no momento, mas “quis dizer-lhe: então jogue! Pode jogar ao Monopólio!”. É esta uma das mensagens que sente necessidade de transmitir, também por via do teatro. Fazer ver a cada um que “ainda podemos”. Podemos sempre.

“O teatro é uma luta constante”, afirma Lina Ramos. E não apenas em termos orçamentais, para sustentar a estrutura ao fim de cada mês. Trata-se de uma luta contra uma forma de estar comodista e conformada; contra a postura daqueles que têm um coração a bater na própria rua e que preferem, no entanto, ficar sentados no sofá. Não é que o teatro seja uma coisa nova ou estranha para nós, enquanto humanos. Em bom rigor, acompanha-nos há incontáveis milénios. E também nem sequer podemos dizer que a dimensão performativa é um exclusivo da humanidade: a natureza dá-nos a conhecer a transversalidade da necessidade de expressão dramática. Mas a verdade é que, em termos societais, fomos relegando essa arte para um plano circunscrito, um contexto enclausurado. Hoje, não vemos o teatro como qualquer coisa que acontece na nossa casa: apenas em dados espaços, e em tempos próprios. Mesmo o teatro de improviso requer uma hora marcada na agenda. Desvinculámos o teatro e a vida – são independentes um do outro. Ironicamente, o ecrã (o da televisão, o do computador, o do telemóvel), bem mais recente na nossa história, encontrou um espaço legítimo e aceite na vida e no quotidiano, que nos é tão confortável. Para a directora artística da Animateatro, “somos cada vez menos humanos”. O teatro ensina-nos a olhar nos olhos, numa era em que, metidos em redomas, já não sabemos estar socialmente.

Uma das grandes apostas da associação é nas produções infantis. A actual, João e o Pé de Feijão, é a 26ª. Estes espectáculos são programados num segundo espaço, o auditório do Cinema S. Vicente. Algumas das produções infantis destinam-se à faixa etária mais reduzida, entre os 0 e os 3 anos de idade. É um trabalho que também se faz por convicção, indo de encontro às preocupações, aos desejos e às metas dos espectadores – cujo valor, independentemente da idade, é o mesmo. E o teatro para famílias é aquele que mais público acolhe, entre as produções da companhia. É interessante verificarmos que, embora exista um crescente esforço institucional em fomentar desde tenra idade o contacto com as artes performativas, a maioria de nós acaba por se distanciar do teatro à medida que cresce: continuamos a ver o teatro como qualquer coisa boa, e até levamos os nossos filhos; mas a mim já não me ajuda, se é para mim não tenho tempo, tantos afazeres se afiguram prioritários.

Quem já visitou o espaço Animateatro conhece a magia que ali mora. No pequeno e confortável hall de entrada, minutos antes do espectáculo, vemos pessoas sentadas nos sofás, a conversar ao lado do candeeiro, a observar a parede repleta de fotografias e cartazes dos quinze anos de história da companhia, à porta a aproveitar o ar da noite até ao último instante, a beber um café no pequeno balcão, ou a comprar o bilhete à última da hora. A lotação da sala é de quarenta lugares, os bancos em escada a formar as filas. E, embora o público fiel já o saiba de cor, nunca é demais relembrar: cuidado a quem se senta no topo, para não bater com a cabeça no tecto. Sabemos que o mundo vai mudar: um espectáculo de teatro é sempre uma morte e um renascimento, entramos no escuro para sairmos diferentes.

Há companhias emergentes a fazer trabalho muito importante. Pessoas jovens e menos jovens, sem amarras, com pouco ou nada a provar, e com espaço de manobra para experimentar. Há corações a bater em muitas ruas, por este país fora. Como espectadores – como humanos – devemos fazer a nossa parte. Procurarmos o deslumbre, e desfrutarmos dele. Deixarmo-nos desacomodar, e implicarmo-nos. Contam-se pelos dedos o número de moradores da Travessa José Maria Vieira que aparecem de vez em quando na cave direita do nº4, para ali se deixarem transformar. Mas a luta continua, com persistência e regularidade. Com a convicção de que a beleza existe para ser encontrada. Em pleno subúrbio, acreditar que a arte é um centro, que nos congrega, mobiliza-nos, e torna-nos mais humanos.

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