Amália Rodrigues, a embaixadora dos portugueses

por Lucas Brandão,    30 Junho, 2016
Amália Rodrigues, a embaixadora dos portugueses
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Amália Rodrigues foi das poucas figuras que reuniu consenso na sociedade do turbulento século XX português. Por se demarcar como uma das principais figuras da cultura lusa, foi com naturalidade que garantiu um lugar na primeira página do fascículo relativo a Portugal. Foi a partir desta que o fado se emancipou e se definiu claramente como um estilo musical de raízes lusitanas. Para além do seu caraterístico fado, Amália usava a sua versátil e dotada voz para interpretar importações estrangeiras (era multilingue) e por flexibilizar o seu estilo, bebendo até do denominado fado-canção.

As letras que escolhia para colocar nos ouvidos da nação eram essencialmente recortes de obras de poetas como Luís Vaz de Camões, Ary dos Santos, Alexandre O’Neill e até do monarca D. Dinis. A relação estável e por alguns problematizada que mantinha com o ditador Salazar permitia que a sua autonomia artística se afirmasse, conseguindo até granjear prestígio internacional e relançar o património artístico criado no país a diversos cantos do mundo. O número de cópias vendido até à data da sua morte (30 milhões, tanto dentro como fora de portas) correspondia ao triplo da população nacional. No entanto, há muito para além da vasta obra de Amália, tratando-se ela, para além de uma figura emblemática, de uma mulher marcante e carismática.

Amália da Piedade Rodrigues nasceu na capital portuguesa a 1 de julho de 1920, apesar do seu nascimento ser registado dias depois da sua mãe dar à luz. O seu pai, músico sapateiro, e com dificuldades de suportar os seus quatro filhos, volta com os outros três e com a sua esposa para o interior do país, nomeadamente para o Fundão. Já Amália é criada com os seus avós e o seu talento vocal é por eles estimulado. Embora tímida, a jovem cantarolava tangos da lenda franco-argentina Carlos Gardel e canções populares solicitadas pelos seus vizinhos e familiares. Após entrar e sair precocemente da escola e de regressar a casa dos pais, com estes a regressarem a Lisboa, Amália acaba por exercer práticas domésticas e por ver a sua liberdade restringida pelas incumbências que lhes eram encarregues. Com 15 anos, em 1935, vende fruta na zona do Cais da Rocha e destaca-se pelo seu peculiar timbre enquanto publicitava a sua oferta. No ano seguinte, inscreve-se na Marcha Popular de Alcântara para as festividades do Santo António de Lisboa e conhece o seu futuro marido, um guitarrista amador denominado Francisco da Cruz, acabando por iniciar as suas atuações em algumas casas de fados, inclusive a mais famosa de então (“Retiro da Severa”).

O seu potencial artístico, contudo, não ficou delimitado à música. Estreia-se em 1940, no Teatro Maria Vitória, na revista, travando encontro com o futuro compositor de muito dos seus fados, Frederico Valério. O divórcio que viria a conseguir três anos após contrair matrimónio permitiu a Amália atuar fora de Portugal, nomeadamente em Madrid. Ainda no meio teatral, atua com a artista conceituada Hermínia Silva na opereta “Rosa Cantandeira”, cantando o “Fado do Ciúme”, este que foi composto por Valério. Com uns tenros 24 anos, a lisboeta desloca-se ao Rio de Janeiro para atuar no Casino Copacabana e deleita a assistência do mesmo evento, garantindo espetáculos concebidos somente para ela. Foi também nesta cidade brasileira em que “Ai Mouraria” foi composto, despoletando um galopante interesse internacional e até alguns piscares de olho provenientes de Hollywood. A estreia no grande ecrã não tardaria, com Amália a participar, em 1947, no filme “Capas Negras”. Incentivada por nomes como o versátil Almada Negreiros e o ministro António Ferro, é convidada a atuar em Paris e em Londres, no Chez Carrère e no Ritz respetivamente.

Na sucessão da aplicação do Plano Marshall por toda a Europa e nos seus espetáculos comemorativos, é também requisitada a atuar numa espécie de congregação da elite de cada país. Após cidades como Roma, Dublin ou Berna, foi a vez de Nova Iorque ser ouvinte de Amália. Em 1952, o palco La Vie en Rose não se fez rogado e recebeu o seu espetáculo durante 14 semanas, assim como o canal televisivo NBC no programa do também músico Eddie Fisher a transmitir a sua atuação. Os convites para a sua permanência por terras americanas foram vários mas todos foram recusados por intenção da artista. Porém, são vários os discos que grava, tanto no estilo prioritário de fado como em flamenco.

Foi também nos EUA que editou o seu primeiro LP designado por “Amalia Rodrigues Sings Fado From Portugal and Flamenco From Spain” com o alicerce da editora Angel Records. O fado produzido e cantado por Amália reportava a uma renovação estética mas sem prescindir dos seus pergaminhos tradicionais. A portuguesa opta por fundir a ruralidade com o crescente e emergente urbanismo, conferindo uma forma adaptável e moldável a qualquer faixa etária e a qualquer escalão social. Para além das obras dos escritores supracitados, foram outros os textos e registos que levaram Amália a transpor para a forma musical. Bocage, Manuel Alegre, David Mourão Ferreira e especialmente Pedro Homem de Mello foram referências líricas e semânticas para a cantora no que toca às suas letras. Foi até a partir do poema “Povo que lavas no rio” deste último que compõe o “Fado de Peniche”, que acaba por servir como hino dos presos de Peniche em tempos ditatoriais. Alguns destes nomes escreveram poesia visando a sua interpretação pela fadista, verificando-se desta forma uma alteração paradigmática no que toca a esta modalidade musical. Em 1961, contrai pela segunda vez matrimónio, desta feita com o engenheiro César de Seabra Rangel, tornando-se este no seu companheiro até à data da morte deste. Não obstante não ter aceite o convite de permanecer no continente americano, volta aos Estados Unidos em 1966, atuando em 1966 com o maestro Andre Kostelanetz e expondo a sua pluridimensionalidade ao interpretar músicas de fado e de folclore português.

Como referido, todas estas circunstâncias da vida de Amália decorriam numa altura em que o seu país era governado de forma ditatorial e repressiva. Desta feita, a artista viu muitos dos seus companheiros de então a serem presos pela PIDE e, apesar do apreço nutrido por Salazar pelo talento e pela notoriedade da artista (o que levou à especulação da sua simpatia pela ditadura salazarista), a lisboeta nunca se coibiu de apoiar os seus colegas e de incentivar a sua libertação. Um deles foi o seu amigo de longa data e compositor musical Alain Oulman, responsável por grande parte dos êxitos de Amália. Após a queda da ditadura, a cantora continua a editar um vasto número de álbuns (entre outros, “Gostava de Ser Quem Era” (1980) e “Lágrima” (1983)) e abraça colaborações com artistas emergentes. Os seus últimos anos, contudo, não contemplaram o furor e a felicidade que preencheram as décadas transatas. Foram várias as complicações médicas que atormentaram a sua voz e que condicionaram o seu trabalho musical. Todavia, não foi por esta fase que a presença e o legado de Amália Rodrigues foram minorados pois a intensidade lírica e a paixão com a qual os vocábulos e as frases eram entoados superava quaisquer dúvidas que se pudessem colocar quanto à grandeza virtuosa da artista. Para além disso, no dia da sua morte, 6 de outubro de 1999, o primeiro-ministro vigente António Guterres decretou luto nacional de três dias.

Alguns dos principais trabalhos da fadista encontram-se elencados na seguinte lista:

  • Amália Rodrigues (1955)
  • Amália À L’Olympia (1957)
  • Com Que Voz (1970)
  • Queen Of The Fado (1990)
  • Segredo (1997) – compilação

Universalmente considerada como uma das vozes do século XX, ao lado de nomes como Édith Piaf, Billie Holiday ou Maria Callas, Amália Rodrigues agigantou Portugal, tanto numa perspetiva cultural como social. As cordas vocais e os pulmões da cantora amplificaram o fado como modalidade musical independente e expressaram o pensamento e o sentimento de muitos dos grandes nomes da escrita lusa. Para além dessa composição minuciosa e criteriosa, a devoção e a profícua criação reforçam um legado que não se esvai perante a carruagem dos anos e das subsequentes décadas. Granjeando com distinção a internacionalização, Amália Rodrigues deu vida à sua reprodução, dando a capacidade de sofrer e de sentir às frases entoadas. A si deve muito o fado, o mesmo que se livrou do espectro do enfado e que projeta com um sorriso o seu divino fado. O fado do fado que Amália tratou de elaborar e de incorporar. Do fado de Portugal se fez legado e de Amália ouvido com especial agrado.

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