Alice Glass: o EP que renasce das trevas do abuso com uma nova expressão artística

por Miguel de Almeida Santos,    23 Agosto, 2017
Alice Glass: o EP que renasce das trevas do abuso com uma nova expressão artística
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Nem todas as bandas têm um final feliz. No caso específico dos Crystal Castles, a separação do duo composto pelo produtor Ethan Kath e a vocalista Alice Glass não foi a melhor. Durante oito anos o caos cozinhado por Kath encontrou em Glass a outra perfeita face da moeda: a sua entrega barulhenta, frequentemente camuflada no meio da paisagem sonora, elevava os esforços de Ethan na mesa de mistura. Depois de três álbuns, deu-se a separação: Glass anunciou a saída da banda no final de 2014, alegando razões pessoais e profissionais.

Um ano depois, Alice lançava “Stillbirth, canção produzida por Jupiter Keyes, ex-membro da banda HEALTH; um tema de distorção calibrada e focada, com a voz de Glass a perscrutar a batida com um brilho etéreo, circundada por sintetizadores atmosféricos e uma percussão enferma. A música veio acompanhada de uma declaração de Alice em que revelava que fora vítima de abuso emocional durante anos, por uma pessoa próxima de si; apesar de não revelar o nome da pessoa, parecia referir-se a Ethan. Seguiram-se trocas de palavras mais azedas (uma declaração de Kath e a resposta assertiva de Alice) e ficou claro que a separação não fora pacífica.

Os Crystal Castles continuaram, e em 2015 Ethan recrutou Edith Frances para nova voz da banda. Em 2016, quase quatro anos decorridos desde o último álbum com Alice, surgiu Amnesty (I), um trabalho que não dá provas de ser digno da antiga dupla, com desinteresse a transparecer um pouco por todo o álbum. Em contraste com esse trabalho, Alice Glass, o EP lançado pela ex-vocalista, é uma surpresa agradável e a melhor sonoridade a surgir após a partida de Alice da banda. Pela primeira vez ouvimos claramente a voz da artista. Não se esconde atrás de efeitos nem de camadas sonoras; canta confiante e segura de si mesma. O projecto mostra uma nova faceta de Alice, um futuro independente da banda que foi o primeiro grande passo de Glass no mundo da música.

Nota-se que a separação de Ethan inspirou as músicas. “Without Love”, o single e primeira faixa do EP, parece discutir a separação amarga entre Ethan e Alice (“How are you gonna lie about me now?” e “Tell me what to spit/ Don’t tell me what to swallow”, uma possível referência à música “Tell Me What to Swallow” do primeiro álbum de Crystal Castles). A melodia do refrão é verdadeiramente cativante, depressa se aloja na mente; e a do teclado também é uma boa adição, com uma influência trap e um tom profético e fatal. Mas o que mais se destaca é a capacidade e ouvido que Glass demonstra ter para melodias vocais poderosas. “White Lies” discute mentiras inofensivas, imbutidas num instrumental que não soa a nada disso; uma ordem sarcástica de Glass aguda, fervorosa (“Tell me I’m your own, give me white lies”), replicada ao longo do refrão que triunfa no meio dos sintetizadores atmosféricos que o decoram.

Forgiveness” assegura a abordagem moderna e distinta de Alice na sua individualidade musical. É um tema tenso, meio industrial, com um início a lembrar “Slip Away” do novo álbum de Perfume Genius; e um refrão dançável, com mais uma melodia interessante da autoria de Glass, a abater a fronteira entre a sua voz e a maquilhagem electrónica. Apesar de o novo EP mostrar um novo lado de Alice, continua presente a abrasão que caracterizava a discografia dos Crystal Castles, e que é um dos aspectos que Alice trouxe consigo depois de se despedir da banda. Parece ouvir-se metal a ribombar por uma sala escura na desconfortável “Natural Selection”, e a melodia cortante e estridente de Alice adequa-se ao instrumental destruidor. Ainda assim a música soa primitiva, esquelética, barulho gratuito e despropositado, em dados momentos do tema.

Alice Glass é catarse, é uma reflexão, uma resposta de Alice às vicissitudes da sua vida. “Somewhere else, someone feels worse/Forget to remember your own worth”, ouvimo-la cantar na mais contida das músicas do EP, “The Altar”. Mais tarde, conclui que “All you regret cannot be reversed”. O passado conturbado não pode ser alterado por mais que o arrependimento e a dor trespassem a alma, e Alice sabe disso. Mas também reconhece que continua a existir, continua a respirar, continua a querer mostrar a sua expressão artística e sabe que pode lutar para que o futuro e o presente nunca fujam do seu controlo. O seu novo EP deixa água na boca para o que virá a seguir, com a garantia de que será certamente um trabalho mais interessante do que qualquer coisa que os (novos) Crystal Castles andam a fazer.

Músicas preferidas: “Without Love”; “Forgiveness” e “White Lies”

Músicas menos apelativas: “Natural Selection”

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