A violência do Estado, numa França em campanha eleitoral

por Miguel Fernandes Duarte,    21 Fevereiro, 2017
A violência do Estado, numa França em campanha eleitoral
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Desde há umas semanas que a França tem sido marcada pela agressão e violação do jovem Theo, no dia 2 de Fevereiro, às mãos de agentes da polícia francesa. O caso aconteceu em Aulnay-sous-Bois, subúrbio de Paris, quando Theo foi interpelado pela polícia para controlo de identidade, numa suposta busca por alegados passadores de droga. Recusando identificar-se por não ter cometido qualquer crime, o jovem é espancado por 4 polícias e violado com um bastão, tendo inclusive de levar pontos e de ficar internado no hospital. Os protestos por este incidente foram crescendo de tom, manifestações e desacatos rompendo em alguns dos subúrbios que afirmam sentir na pele este tipo de acções injustificadas por parte das forças policiais. Como sempre parece ser com violência que se responde à violência policial, num perpetuar de medição de forças de parte a parte.

Mas nem foi o caso do protesto que decorreu no passado dia 10 de Fevereiro no centro comercial Forum Les Halles, por cima de uma das mais movimentadas estações metropolitanas de Paris. Ao que parece uns jovens estariam dentro do Forum Les Halles empunhando cartazes com palavras de ordem, gritando, talvez, mas de qualquer das maneiras sem criar qualquer desacato do ponto de vista físico. Isso não impediu, no entanto, que os mesmos fossem obrigados a sair para fora do espaço e, quando, descontentes com o assunto, não quiseram fazê-lo, foi chamada a intervir a polícia de intervenção, escudos empunhados e inclusive lançando gás lacrimogénio. Ora, foi curiosamente enquanto tudo isto decorria que eu cheguei ao mesmo centro comercial, sem qualquer conhecimento acerca do que se passava. Impedindo quem saía dos transportes de entrar directamente pela estação subterrânea, funcionários recambiavam-nos para o exterior enquanto cobriam as suas faces com lenços ou com as mãos, tentando proteger-se do gás lacrimogénio que tinha sido libertado. Ninguém percebia o que se passava, só se associando a sensação desconfortável no nariz e na garganta aquando da passagem da polícia de intervenção, entrando pelas portas onde, ainda agora, nos tinham proibido de entrar. O ridículo era como o resto do centro comercial continuava no seu normal funcionamento. Aparentemente só uma das partes do mesmo estava fechada e, indo pelo exterior, era possível aceder ao mesmo na mesma. Foi assim que nos demos no meio dos ditos jovens protestantes, meia dúzia de gatos pingados que, à porta da zona “fechada” do Forum Les Halles, voltados para a polícia de intervenção que se encontrava parada no fundo do corredor, libertavam gritos de protesto contra a violência policial e de apoio ao jovem Theo.

Como jovem crescido no subúrbio, ainda que um particularmente tranquilo e pacífico, não posso deixar de estar solidário com aqueles lutam contra um regime que parece ser generalizável à grande maioria das metrópoles: o das leis aplicadas nas cidades não se aplicarem aos subúrbios, por estes últimos não terem a mesma repercussão mediática que a cidade que rodeiam. É daí que vem a vontade de levar o protesto para o centro, e foi por isso que estes poucos jovens decidiram mostrar-se pacificamente neste ponto da cidade de Paris. Não presenciei os acontecimentos do início ao fim, mas é curiosa a forma como parte da polícia a iniciativa de tornar este protesto um pouco menos pacífico do que estava inicialmente, o gás lacrimogénio o mais flagrante. Se obrigar os protestantes a reagir com violência, a polícia tem dos seus lados o argumento para também se usar dela. Felizmente a última das manifestações, que pôs fim a 10 dias de protesto constante em várias zonas da região metropolitana de Paris, ocorreu pacificamente, na praça-mor dos protestos parisienses, a Place de la Republique.

A França é, nesta altura, um estado crescentemente policial e securitário, que parece achar que a resposta para todos os seus problemas é aumentar a vigilância, a repressão e a opulência policial e militar. É essa a conversa da direita francesa, tanto dos extremistas da Frente Nacional como dos Republicanos, partido da direita francesa encabeçado por François Fillon. Foi por ver o apoio a estes partidos a crescer que François Hollande, actual presidente francês, decidiu tomar as medidas securitárias que os mesmos exigiam. Acabou a perder todo o seu apoio de base do partido e das forças de esquerda, e é um dos poucos presidentes franceses a não se recandidatar para um segundo mandato. Para as Eleições Presidenciais francesas a decorrer no final de Abril (1ª volta) e início de Maio (2ª volta), o Partido Socialista de Hollande acabou por escolher nas primárias Benoît Hamon, ex-ministro da Educação e claramente um representante da ala esquerda do partido, que esteve, aliás, em Portugal há uns dias atrás e disse que gostava que a esquerda francesa se unisse como o fez a esquerda portuguesa (uma clara referência a um possível entendimento com Jean-Luc Mélenchon, representante da Frente de Esquerda, que espera melhorar o seu resultado face aos 11,1% que conseguia nas presidenciais de há 5 anos, aquando da eleição de François Hollande).

Os trunfos parecem, no entanto, estar nas mãos do ex-ministro da economia do último governo, Emmanuel Macron, que se apresenta como o candidato que “não é de esquerda nem de direita”, numa tentativa de juntar em si todos os descontentes com os concorrentes à eleição. Com apenas 39 anos, e casado com uma mulher 24 anos mais velha (relação que já tem dado que falar nas revistas cor-de-rosa francesas), Macron fia-se mais no seu charme que nas suas ideias políticas, mas tem subido nas sondagens e está, nas mais recentes sondagens, empatado com François Fillon para decidir quem irá disputar a 2.ª volta com Marine Le Pen da Frente Nacional. Mas quem sabe como irão as coisas correr quando, há apenas uns meses atrás, Macron era um candidato irrelevante a eleição estava supostamente entregue a Fillon, que venceria facilmente uma 2.ª volta frente a Le Pen. Mas Fillon viu-se envolvido no seu escândalo Penelopegate, quando veio a público que tinha contratado a sua mulher para assistente política e que o mesmo não passava de um cargo fantasma, já que a sua mulher Penelope não tinha, afinal, exercido qualquer função, mas tinha, mesmo assim, estado a receber 3000 € por mês por esse suposto emprego, num total de cerca de 500 mil € recebidos por um trabalho falso. Fillon sofreu nas sondagens, mas não se mostrou arrependido pelas supostas falcatruas cometidas. Se calhar não vê qualquer problema em a mulher receber 3000 € por mês por um falso trabalho de assistente porque sempre olhou para ela como a sua assistente, desde o início da relação entre ambos. Que interessa se ela não realizou qualquer trabalho de assistência parlamentar, se foi ela que cuidou dos filhos e das lides domésticas? François Fillon é, também, o mesmo homem que critica a vida burguesa dos parisienses, pelos cafés de St. Germain, por exemplo, enquanto o próprio se diverte a colecionar carros no Château onde habita com a sua família. Fillon e Le Pen são diferentes no seu tipo de abordagem política, claro, mas ambos acham que a solução passa por mais segurança, menos estrangeiros, menos emigrantes, nenhuns refugiados. E Le Pen não perdeu tempo para atacar aqueles que se manifestam por justiça para Theo e contra a violência policial, apelidando-os de “milícias de extrema-esquerda”, e afirmando que tais manifestações não deveriam ser autorizadas.

Tendo apenas chegado a Paris após o começo da crise dos refugiados, é-me difícil distinguir entre o que seria a cidade antes e o que é agora; em que medida, por exemplo, muitos dos pedintes na rua podem ou não estar a fazer-se passar por refugiados aproveitando a onda. Mas a verdade é que os há em grande número, alguns dormem na rua em tendas, com crianças, e ao passar por eles e não os ajudar o que sinto é sempre um enorme aperto no coração por me aperceber que, no fundo, não estou a ser muito melhor que aqueles que os desprezam. Desculpo-me para mim próprio com o facto de ser estudante e estar deslocado, todas as despesas já demasiadas para ainda lhes acrescer estes pequenos donativos.

No mundo actual, infelizmente, só fica com os louros da ajuda praticamente aquele que possui os fundos para tal. É claro que existem milhões de maneiras de ajudar sem envolver o dar do próprio dinheiro, e, mesmo no que toca a dinheiro, é sempre possível disponibilizar uma pequena quantia, sacrificarmo-nos pelos outros; mas a verdade é que este devia ser um trabalho do estado. Os impostos servem, entre outras coisas, para equilibrar as condições de vida da população. Ajudar estas pessoas é o que estado devia fazer com o dinheiro que lhe damos, é como estarmos a delegar o trabalho de ajudar individualmente, passando a ser a organização suprema da sociedade a encarregar-se de fazer com que estas pessoas tenham dinheiro para comer e não tenham de estar a dormir e a pedir na rua. Não só as que chegam aqui vindas de um país destruído pela guerra, mas também as outras que, por quaisquer outras vicissitudes da vida, acabaram no mesmo local e na mesma situação. Mesmo quem se encontrar nessa situação por “não se esforçar o suficiente” merece ser ajudado, porque é um ser humano, e um ser humano, mesmo o pior de todos, merece viver com um mínimo de dignidade. Isso, mais do que das pessoas individuais, tem de partir do Estado (ou de mais que um). Um estado que assuma o seu papel de equilíbrio daqueles que vivem sob ele, e não um estado violento, repressivo, onde a cada um seja incutido um medo que, quando for tarde demais, só uma revolta violenta possa superar.

Se calhar se o dito mundo ocidental parasse de fingir que é possível tirar os problemas daqui, pô-los numa caixa, e pontapeá-los de para outro qualquer lado do mundo, fossemos capazes, de facto, de resolver esses mesmos problemas. É aliás, gritante, o paradoxo que há, neste caso, num dos países que causa esta migração (a França faz parte do grupo de países que bombardeia constantemente a Síria), não querer receber aqueles que desaloja. Os problemas fora do ocidente passaram a ser responsabilidade do mesmo assim que este decidiu meter lá os pés e colonizar. Quer queiramos quer não, teremos sempre uma dívida para com estas pessoas.

Foto por Aurelien Morissard/AP

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