A sociedade aberta proposta por Karl Popper

por Lucas Brandão,    27 Janeiro, 2017
A sociedade aberta proposta por Karl Popper
Karl Popper / DorianKBandy (Wikimedia Commons)
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Karl Popper foi um dos rostos primordiais na renovação da investigação científica. Entre diversos conceitos apresentados da sua autoria, destacam-se a falsificabilidade das teorias científicas, propriedade que, segundo o próprio, não é alienável de qualquer hipótese proposta em ciência. No entanto, também na visão sociopolítica o austríaco deixou um contributo forte e vincado. No despoletar da Segunda Guerra Mundial, e depois do desapontamento expresso pelos ideais marxistas, Popper seguiu o seu próprio rumo e vislumbrou uma senda própria para o futuro da sociedade. Assim, formulou o conceito de sociedade aberta, no qual o sujeito se apresentaria como uma figura presente e proeminente em toda e qualquer decisão efetuada em grupo.

Karl Raimund Popper nasceu na Áustria no dia 28 de julho de 1902. Apesar de deixar a escola aos 16 anos de idade, o futuro filósofo tornou-se estudante convidado na Universidade de Viena, na qual estudou matemática, física, psicologia, história da música e filosofia. Foi neste meio académico e nesta ebulição de teorias sociais e científicas que se sentiu atraído pelo marxismo, cujas formulações práticas começaram a ganhar forma na União Soviética. No entanto, e após ver nove dos seus colegas serem abatidos numa rixa de rua em 1919, e mesmo estando eles desarmados, Popper tornou-se descrente relativamente ao materialismo histórico defendido por Karl Marx. Tomando-o como uma pseudociência no sentido em que o seu poder explanatório não podia ser falsificável, o austríaco virou as suas atenções para uma nova ideologia, uma que viria a reinventar nas suas propostas sociológicas. Assim, tornou-se adepto do liberalismo social, apregoando o bem da comunidade consonante com a prosperidade individual, sustentando-se na intervenção estatal na educação e no combate à pobreza e à precariedade.

Foi com base nessa harmonização entre o bem da comunidade e a prosperidade individual que o filósofo enveredou por visualizar a transição efetuada pelos gregos clássicos do tribalismo para o conceito de uma sociedade aberta, na qual, sustentada em raízes democráticas, todo e qualquer interveniente social teria uma voz ativa. A peculiaridade deste período transitório sustentava-se na aquisição de costumes sociais e de leis racionais, distintas das sociedades tribalistas e coletivistas, nas quais se partilhavam padrões e traços identitários. As relações interpessoais seriam assim menos consanguíneas e mais promovidas pelo compromisso democrático e social, no qual todos interagem com todos com um certo grau de independência.

Finalizada esta adaptação a um novo modelo social, os indivíduos conseguem já diferenciar aquilo que são as leis naturais daquelas que a sociedade molda com a experiência e com a prática democrática, crescendo também a sua responsabilidade pelas escolhas morais que efetuam durante a sua vida. Desprendidos de uma crença mágica ou supranatural que tudo conduz e determina, é maior a autonomia e, por si só, a crescente necessidade de um sujeito se afirmar por si mesmo. Assim que o individualismo e o humanitarismo (moral que aspira ao tratamento moralmente correto do próximo) são reconhecidos por cada um, é impossível de regressar à sociedade fechada, visto que o seu papel social e comunitário está definido e esclarecido na mente de cada um. No entanto, Popper reconhece também que se foi perdendo o espírito de grupo que o tribalismo suscitava, espírito que poderia fazer frente às soluções totalitárias apresentadas no século XX e cuja ausência só as tornou mais praticáveis.

A sociedade aberta tornou-se um conceito latente às sociedades que foram empreendendo o liberalismo social e económico, não tanto devido aos contributos do austríaco mas mais às soluções políticas que se foram exibindo na Europa e que se inspiraram nos ideais norte-americanos e britânicos. Porém, as sociedades com base no êxito industrial geraram o anonimato, tornando cada vez mais descaraterizadas as relações entre os seres humanos. Nesse sentido, o espírito de grupo permanece numa espécie de coma, erguendo-se, porém, em ocasiões nas quais existe uma afronta aos valores sociais defendidos por cada um. Por si só, e opondo-se ao anonimato laboral suscitado pelas indústrias, os níveis mais elevados de literacia (acesso à educação crescente) e de mobilidade social permitem responder com outro tipo de armas aos desafios que surgem e que colocam em risco a implícita sociedade aberta.

Ainda no sentido conceptual da sociedade aberta, o filósofo considera imprescindível a existência de uma democracia como base para as reformas estruturais de maior ou menor dimensão inspiradas pela sociedade aberta e que, por conseguinte, não impliquem revoluções ou derramamentos de sangue. Assim, a liderança assumida pelas figuras que assumem o protagonismo da atividade democrática deve contar com um acompanhamento racional e consciente por parte daqueles que seguem o seu rumo, estes que são confrontados pelas suas escolhas pessoais e profissionais de forma permanente e premente.

Tudo isto sem nunca perder as diretrizes fundamentais da sociedade aberta, sendo estas a liberdade política, tanto em atividade como em associação, e os direitos humanos inalienáveis a cada um. Proponentes modernos do conceito defendem que a sociedade, com a expansão da expressão do conhecimento em mais lugares, não deve possuir segredos relativamente ao pendor público que medidas ou movimentações possam ter. Tudo deve ser conhecido por todos, de forma a inspirar e a aspirar ao contributo e à participação de todos.

Todavia, o conceito de sociedade aberta apresentado por Popper na obra “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos” (1945) concerne mais a um caminho epistemológico que político, no sentido em que o conhecimento é apreendido e partilhado numa sociedade ampla e interligada, tanto o conhecimento moral como científico ou artístico. É com base nisto que condena as ciências sociais por desconhecer o teor do fascismo e do comunismo, apontando que o totalitarismo forçava o conhecimento a remeter-se às matrizes ideológicas, tornando o pensamento crítico nulo e, por si só, a neutralização daquilo que de novo poderia surgir e que poderia ser dissonante das suas doutrinas. Também nesta obra o autor denuncia os riscos que o idealismo político inspirado por Platão tinha em desembocar em fórmulas totalitárias, considerando que divergia do seu mentor Sócrates por não assumir tendências humanitárias e democráticas nos seus postulados políticos. Ainda assim, não deixa de caraterizar o grego como um grande sociólogo mas que receia em conduzir uma mudança pela via liberal, prendendo-se aos seus desígnios de figura suprema da filosofia ateniense.

Tudo isto no primeiro volume da obra. No segundo, o austríaco critica tanto Georg Hegel como Karl Marx por assumirem o materialismo histórico enraizado no idealismo a partir das ideias de Aristóteles (essencialmente no conceito de escravidão e na necessidade de superação desta condição a partir das bases historicistas que as suas teorias incorporam), acusando-os de estar na base dos regimes totalitaristas do século XX.

Assim, e na perspetiva epistemológica com a qual o europeu propõe a sociedade aberta, Popper aponta que o conhecimento é falível e provisório, devendo essa sociedade estar aberta a pontos de vista alternativos e que se aproximem da verosimilhança desejada. Assim, esta abertura social vincula-se com sentido ao pluralismo religioso e cultural, sendo uma proposta de sociedade progressista na qual o conhecimento está em constante aprimoramento. No lado oposto, a sociedade fechada declara assim o conhecimento como certo e a verdade como indiscutível na sua difusão e afirmação. Desta forma, a liberdade de expressão e de pensamento torna-se bastante condicionada e limitada, impedindo um pensamento crítico que envolva todos os agentes e que seja capaz de renovar as instituições legais e culturais nas quais a sociedade assenta. Ideais como a equidade e a mutabilidade são sufocados e desprezados numa sociedade unidimensional e fechada para a pluralidade política.

Com base nesta argumentação, Karl Popper propôs o conceito de sociedade aberta, definição que ainda se torna questionada na atualidade, com os limites da liberdade de expressão e de pensamento a serem postos em causa. O filósofo põe em perspetiva uma sociedade na qual ideias e teorias entram em discussão num espaço emergente e agregador, no qual, contudo, se sente ainda uma chamada emocional pela unidade espiritual perdida nas comunidades tribais. A sociedade aberta resulta de uma evolução temporal, de um continuum histórico que, com incidência nas mudanças encetadas pelos gregos, se tornou menos fechada e orgânica e se abriu para a atitude crítica em relação à tradição e ao costume comunitário e, em contrapartida, se tornou mais abstrata e despersonalizada.

Assim, a sociedade que a maioria dos países possui assume as figuras governamentais como eticamente responsáveis e tolerantes e os mecanismos a partir dos quais a prática política se dá transparentes e flexíveis. Opondo-se em larga medida ao autoritarismo, é com relevância que conceitos como este surgem na atualidade, urgindo uma discussão atenta e consistente sobre quem somos e em que lugar estamos no plano da sociedade aberta, livre e, acima de tudo, saudável.

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